Paidéia é a denominação do Programa de Saúde de Família de Campinas.
A visita domiciliar ocorre quando a equipe de saúde da família deixa o centro de saúde e dá consulta no domicílio do doente. Geralmente, é solicitada por familiar de enfermo, profissional da área de saúde de unidade de maior complexidade, assistente social, conselheiro tutelar ou agente comunitário de saúde que, nas suas andanças pelo bairro, vê-se defronte com paciente ou situação que exija visita da equipe.
Nossa Equipe Verde está lotada no Centro de Saúde São Domingos, Distrito de Saúde Sul do Município de Campinas, entre o aeroporto de Viracopos e Vinhedo, próximo a Indaiatuba. Tem sob sua tutela o Jardim Campo Belo I, Jardim Marisa, Campituba e Cidade Singer: bairros pobres, ruas de terra, vielas, barracos de madeira, casas, gambiarras, desempregados, analfabetos, adolescentes grávidas, crianças descalças, cariadas, idosos sem aposentadoria, cães sarnentos, galinhas magras, Schistosoma, Aedes aegypti, homicídios, drogas.
Agendamos para aquela tarde nublada de outono três visitas domiciliares: duas solicitadas por parentes de enfermos e outra por uma de nossas agentes. Partimos portando estetoscópio, esfigmomanômetro, receituário e prontuário de um dos doentes.
A primeira parada foi na casa da senhora que acolhia o irmão de 53 anos, raça negra, hipertenso, alcoolista, acamado há pouco mais de três semanas devido a acidente vascular encefálico hemorrágico que lhe causou perda da força muscular no lado esquerdo do corpo e a dependência de terceiros para higiene pessoal, ingestão de alimentos e mobilização no leito. Iniciara tratamento de tuberculose pulmonar há aproximadamente um ano mas, por causa das várias interrupções, voltou a apresentar bacilo álcool-ácido resistente no escarro por ocasião da sua internação para tratamento da hemorragia cerebral. Da mesma forma que se esquivara de tomar os comprimidos de rifampicina, isoniazida e pirazinamida, aparentemente também não levara a sério o tratamento da hipertensão arterial. Agora, rendido aos cuidados misericordiosos da irmã, acatava passivamente o esquema tríplice. Recebeu-nos na cama instalada na sala, próxima à porta de entrada, defronte à televisão. Bem cuidado, hidratado, roupa limpa, sem escara, causou-nos ótima impressão e a esperança de que, supervisionado pela irmã, concluiria finalmente o tratamento da tuberculose e recuperaria, pelo menos parcialmente, sua independência física. O outrora rebelde irmão, alheio às recomendações médicas e fraternas, transformara-se em paciente colaborador, amável, livre do álcool por falta de opção. Orientamos sobre fisioterapia, prevenção de escaras, trombose venosa, infecção urinária e tuberculose.
A visita seguinte originou-se de pedido de uma mãe inconsolável que comparecera ao centro de saúde para relatar, com lágrimas na face, a história da filha de 20 anos, vítima de ferimento por arma de fogo na medula espinhal. A moradia onde se encontrava a jovem tetraplégica era a última de uma estreita e longa viela com chão de terra. Casa comprida, cômodos após cômodos comunicando-se por aberturas inacabadas nas paredes, dando a impressão de que foram sendo construídos uns após os outros conforme a situação financeira permitia. O último aposento abrigava uma cama alta sobre a qual repousava a indefesa vítima da violência reinante nesta afastada periferia onde nem as andorinhas ousam se aventurar. Magra, bonita, disfarçava sua legítima revolta com recatado sorriso enquanto sua dedicada genitora nos relatava os detalhes da internação no “Mario Gatti”, exibia a tomografia da coluna e demandava remédio para a dor da filha. Em outro cômodo, brincava silenciosa uma linda menina nos seus três anos de vida, provavelmente saudosa dos tempos de divertimentos e jogos barulhentos que devem haver precedido a tragédia materna. Impotentes para devolver a marcha a sua “mami” que passara a receber comida na boca, usar fralda e tornara-se muito chorona, preocupamo-nos em orientar mobilização freqüente no leito, exercícios com os membros, massagem das panturrilhas, higiene pessoal caprichada e analgésicos. Tentamos melhorar sua auto-estima citando pessoas famosas que venceram na vida apesar da plegia. Deixamos a viela tomando cuidado para não pisar em falso naquele chão irregular por onde um dia muito provavelmente alguém empurraria com esforço a cadeira de rodas que devolveria nossa enferma ao mundo externo.
A terceira e última visita foi indicada por agente de saúde. Cômodo único de alvenaria com janelas mal fechadas por “sanitos”, localizado próximo à Lagoa do Tomate. Roupas, sapatos velhos e lixo largados ao redor. No interior, cachorros, patos, fogão imundo, cama bagunçada, chão de terra. A geladeira velha fazia as vezes de armário. Não havia chuveiro ou algo parecido. A moradora, cerca de 65 anos de idade, apareceu com sorriso na face, enrolada em tecido preto que deixava à vista as alças do sutiã, manchadas pela sujeira. Nos contou que o filho fôra assassinado e ela, com receio da mesma sorte, passava apenas os dias naquela casa indo dormir na rodoviária todas as noites. Fez questão de nos mostrar um “holerith” antigo, já amarelado, do tempo que trabalhava como enfermeira na Cruz Vermelha. Aparentemente, nenhuma enfermidade lhe afligia naquele momento. Talvez algum distúrbio demencial no início, ainda sutil, mas que justificaria sua paranóia de perseguição. Bastava a pobreza. Deixamos o local com planos de retornar num futuro próximo acompanhados da assistente social, o que realmente aconteceu.
As visitas domiciliares proporcionam à equipe de saúde a percepção da realidade daquela população pobre, residente da periferia de um dos municípios mais ricos do país, onde existe fome, poluição do solo, desemprego, violência. As visitas domiciliares tornam possível o atendimento de enfermos que, de outra forma, não seriam sequer conhecidos da equipe. Pessoas que muito raramente conseguem consulta nas unidades de saúde.
A equipe reavaliou as prioridades no atendimento. A saúde pública não deve se limitar àqueles que conseguem alcançar as unidades de saúde. Existe um contingente de desamparados escondidos necessitando de assistência básica, esperando a visita das equipes multidisciplinares.
As visitas conscientizaram a equipe para a importância do trabalho multidisciplinar e atividades intersetoriais. Além dos agentes comunitários de saúde, generalista, pediatra, ginecologista, enfermagem, contamos com apoio contínuo de assistente social, psicólogo e psiquiatra.
Graças às visitas domiciliares, conhecemos mais profundamente a população que nos foi adscrita. São pessoas simples, com pouco estudo, vítimas do alcoolismo, drogas, violência física, sexual, doméstica, cultural. Lutam para sobreviver numa região afastada, violenta, quase sem perspectiva de enriquecimento ou de sucesso profissional. São também generosos, simpáticos, calorosos, sempre dispostos a nos ajudar.
Atualmente, enquanto as escolas médicas discutem a reforma de seus currículos, classicamente voltados para o ensino dentro dos hospitais em detrimento do aprendizado nas unidades básicas de saúde, os programas de Saúde da Família vão mais adiante e mostram que as atividades acadêmicas podem e devem ultrapassar os limites dos centros de saúde e levar os jovens esculápios para perto da população. Chega de dar consultas apenas no nosso território. Vamos visitá-los em suas casas.
Graças ao Paidéia, adotamos um olhar mais humano e verdadeiro sobre nossos enfermos.
Redescobrimos, diariamente, a beleza, por vezes esquecida, da medicina.
Rubens Bedrikow
Campinas, agosto de 2003.
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