domingo, 31 de julho de 2022

Orelha nas costas (carta a Danuza Leão)

Prezada Sra. Danuza, 


Gostei muito do texto "Uma certa saudade" publicado na Folha de São Paulo do dia 10 de fevereiro último. Sou médico clínico geral e curioso da história da medicina e, talvez por isso, gostei do seu médico calmo, amigo da família, que perguntava sem pressa, que fazia um carinho. Nos tempos atuais, fica a impressão de que a grande maioria dos esculápios não sabe o que é atender sem pressa, não conhece a família do doente, e às vezes nem mesmo o próprio enfermo que chega a ser chamado de caso.

No entanto, o que mais despertou minha atenção foi o fato do seu médico encostar a cabeça nas costas para escutar seus pulmões e a perturbação que esse contato íntimo lhe provocava. Ao que tudo indica, foi essa perturbação que levou o renomado clínico e tisiologista francês René Théophile Hyacinthe Laënnec a inventar o estetoscópio em 1816. Laënnec seguia o costume da época e auscultava o tórax de seus doentes através da aplicação direta da orelha sobre o mesmo, até que, em 1816, consultado por uma jovem com sintomas de doença cardíaca, considerou-se impedido de realizar a auscultação direta devido à idade e sexo da paciente. Ocorreu-lhe, então, enrolar uma folha de papel de forma a produzir um cilindro e aplicar uma extremidade sobre a região precordial da enferma e a outra sobre sua própria orelha. Para surpresa sua, ouviu com inesperada clareza os batimentos cardíacos da jovem. O novo instrumento postou o competente médico, e aqueles que viriam depois, a pouco mais de trinta centímetros de seus doentes, distância sem dúvida mais respeitosa. 

Portanto, mais de um século depois da invenção do estetoscópio, ainda se praticava a auscultação direta no nosso país! Teria o invento custado a popularizar-se? Ou os médicos confiavam mais na ausculta direta? Ou temiam pelo fim da verdadeira relação médico-paciente? 

Outra interessante questão que surge à partir da leitura do seu texto é a aceitação que um médico teria, nos dias de hoje, se voltasse a encostar a cabeça nas costas de seus doentes. Atualmente, os médicos não são amigos da família nem do doente, as consultas quase sempre têm curta e insuficiente duração e costumam terminar com pedidos de exames caros, complexos e, às vezes desnecessários. Quem sabe se a pressa acabasse, se a conversa esticasse, se a orelha nas costas voltasse, os diagnósticos sairiam mais facilmente, mais elegantemente, os exames seriam menos frequentes, a medicina mais barata e acessível a uma maior parcela da população, a relação médico-paciente mais sólida e os erros médicos menos graves e mais raros ?

Essas memórias que a senhora escreveu num domingo de carnaval, imagino que acometida de certa nostalgia, quase depressão pelo fato de ligar a televisão e tentar enfrentar a transmissão dos desfiles ou o Big Brother, enriqueceram o domingo de alguns leitores. 

Um abraço,



Rubens Bedrikow


Campinas, 12 de novembro de 2004. 

Laënnec, o inventor do estetoscópio, e a saúde do trabalhador

A história da invenção do estetoscópio costuma agradar aos alunos que a escutam pela primeira vez. O médico francês René Thèophile Marie Hyacinthe Laënnec (1781-1826), renomado cirurgião e clínico, trabalhava, em 1816, no Hospital Necker, em Paris. Valendo-se de sua vocação musical como flautista e de sua observação de duas crianças que brincavam num parque transmitindo e ouvindo sons através de um peça de madeira, solucionou o problema de examinar mais detalhadamente uma jovem cardiopata, sem aplicar diretamente sua orelha sobre o tórax dela, procedimento corriqueiro na medicina daquela época. Enrolou folhas de papel de forma a obter um cilindro sólido, aplicou uma das extremidades sobre a região precordial da paciente e escutou os batimentos cardíacos pela outra. Surpreendeu-se com a clareza dos sons e vislumbrou as possibilidades do método para o estudo de doenças cardíacas e pulmonares. Iniciou, então, o desenvolvimento de um aparelho cilíndrico de madeira com dimensões mais adequadas à sua função de exame do tórax. Estava criada a ausculta mediata, publicada no livro “De l’auscultation médiate ou Traité du diagnostic des maladies des pulmons et du coeur, fondé principalement sur le nouveau moyen d’exploration". 

Essa história está presente em livros de história da medicina como “Medicine, an illustrated history”, de Albert S. Lyons e R. Joseph Petrucelli, ou “Medicine, a treasure of art and Literature”, entre outros. 

Recomento o texto do Prof. Arary da Cruz Tiriba, intitulado “Nos remerciements, Laennec!”, publicado no Suplemento Cultural da Revista da Associação Paulista de Medicina de outubro de 2013, no qual ele, próximo de completar 90 anos, relata a história da invenção do estetoscópio a alunos de medicina com “colar profissional pendurado ao pescoço”, durante visita em enfermaria de hospital universitário.

No livro “Les trois médecins”, de Martin Winckler, me deparei com outra informação curiosa relatada na obra de Laënnec1: a extremidade do cilindro destinada a ser aplicado no tórax do paciente deve ser ligeiramente côncava a fim de não deslizar e melhor captar os sons. Esta cavidade, que a pele preenche muito facilmente, nunca forma um vazio, mesmo nos pontos mais planos do tórax. Quando há emagrecimento excessivo, com perda de massa dos músculos peitorais, a ponto de deixar entre as costelas sulcos suficientemente profundos, pode ocorrer de a extremidade do cilindro não ser ocupada em toda sua superfície. Nestes casos, estas fendas devem ser preenchidas com um pedaço de pano ou algodão coberto com um pano ou uma folha de papel. A mesma precaução deve ser tomada para a exploração do coração, em indivíduos cujo esterno é deprimido para trás em sua parte inferior, como acontece freqüentemente em sapateiros e em alguns outros artesãos. Portanto, diante de sapateiros com o tórax do tipo infundibuliforme, isto é, com depressão do terço inferior do esterno até o apêndice xifoide, haveria um cuidado a mais na aplicação do estetoscópio cilíndrico. Esta recomendação de Laënnec indicaria que tal deformidade torácica estaria relacionada a algumas ocupações artesanais, em especial a de sapateiro, o que poderia interessar aos médicos do trabalho. 

Busquei no livro “As doenças dos trabalhadores”, escrito por Bernardino Ramazzini, em 1700, alguma informação sobre deformidade torácica em sapateiros. Nenhum dos capítulos foi dedicado a essa classe de trabalhadores. No capítulo “Doenças dos operários sedentários” há menção a sapateiros e alfaiates, os “artesãos de cadeira”, que “se tornam encurvados e corcundas”. “Mais que gibosos, de perfil parecem macacos; como nos macacos, suas vértebras dorsais igualmente se tornam salientes”. Sofrem de dores lombares. Contudo, não há nenhuma referência à deformidade do esterno.

No “Dicionário de Saúde e Segurança do trabalhador”, organizado por René Mendes, também não encontrei nenhum verbete relacionado a sapateiro ou a deformidade torácica relacionada ao trabalho.

A condição conhecida como “peito de sapateiro” ou “Pectus excavatum” ou “Pectus Carinatum” aparece em obras de ortopedia e são citadas como causas possíveis a hereditariedade, escoliose, cifose e desproporção entre o crescimento do esterno e dos arcos costais. 

A expressão “peito de sapateiro” e a menção aos sapateiros e outros artesãos como portadores de deformidade torácica caracterizada pelo afundamento do esterno na obra de Laënnec, poderia indicar duas condições próprias dessa ocupação no passado: um processo de trabalho no qual o sapateiro apoiasse vigorosamente um aparelho ou o próprio sapato contra seu esterno e, talvez, o trabalho infantil, isto é, o início da atividade antes do término do crescimento da caixa torácica, o que acarretaria a deformidade descrita, decorrente, portanto, da limitação do avanço anterior do esterno durante o crescimento da criança.

O esclarecimento da questão poderá vir de conversas com colegas da Saúde do Trabalhador e com sapateiros. 

Por enquanto, resta a contribuição provocativa do tisiologista Laënnec para a história da Saúde do Trabalhador. Seja pela menção especial aos sapateiros no momento de descrever o uso do estetoscópio cilíndrico seja porque ele faleceu de tuberculose aos 44 anos, muito provavelmente adquirida de um paciente que ele cuidou durante suas atividades profissionais.     


1. “L’extrémité du cylindre destinée à être appliquée sur la poitrine du malade, c’est-à-dire celle qui est formée par l’embout ou obturateur, doit être très légèrement concave; elle en est moins sujette à vaciller, et cette cavité, que la peau remplit très facilement, ne forme jamais de vide, même sur les points les plus plats de la poitrine. Lorsqu’un amaigrissement excessif a détruit les muscles pectoraux, au point de laisser entre les côtes des gouttières assez profondes pour que l’extrémité du cylindre ne puisse porter de toute sa surface, on remplit ces intervalles de charpie ou de coton recouvert d’un linge ou d’une feuille de papier. La même précaution doit être prise pour l’exploration du coeur, chez les sujets dont le sternum est enfoncé en arrière dans sa partie inférieure, comme il arrive fréquemment chez les cordonniers et chez quelques autres artisans."  

 

sábado, 23 de julho de 2022

Cuidados paliativos na literatura, 1974

 … il s’est approché de moi et puis de fil en aiguille il s’est mis à me parler d’un voyage qu’il a fait il y a quelques semaines, en Angleterre, pendants les vacances d’été, dans un service hospitalier où on s’occupe des personnes qui vont mourir… Je sais, ça a l’air sinistre, quand je dis ça, mais ça ne l’était pas quand il m’en parlait. Il m’expliquait que, là-bas, on ne laisse pas les gens mourir dans la douleur, on leur donne des médicaments qui les soulagent sans les assommer, et qui leur permettent de finir leur vie tranquillement, de réaliser les choses dont ils ont envie pendant le temps qu’il leur reste - ranger leurs affaires, faire un voyage pour aller visiter un château, une église qu’ils ont toujours voulu voir, se réconcilier avec leur parents ou leurs enfants, raconter leur vie por qu’il en reste quelque chose…


…ele aproximou-se de mim e depois uma coisa levou à outra e começou a falar-me de uma viagem que fez há algumas semanas, na Inglaterra, durante as férias de verão, a uma ala hospitalar onde cuidam de pessoas que vão morrer... Eu sei, parece sinistro quando digo isto, mas não foi assim quando ele me falou sobre isso. Explicou-me que, ali, não deixam morrer pessoas com dor, dão-lhes medicamentos que as aliviam sem as derrubar, e que lhes permitem terminar a sua vida tranquilamente, fazer as coisas que querem fazer durante o tempo que lhes resta - arrumar as suas coisas, fazer uma viagem para visitar um castelo, uma igreja que sempre quiseram ver, reconciliar-se com os seus pais ou com os seus filhos, contar a sua história de vida para que algo reste dela…


No trecho acima, extraído do livro “Les trois médecins”, de Martin Winckler, publicado em 2004, a senhora Moreno, faxineira do alojamento de estudantes da fictícia Faculdade de Medicina de Tourmens, narra um diálogo seu com o estudante Gray, ocorrida em novembro de 1974. 

Ao que parece, nesse momento, o que denominamos hoje de cuidados paliativos era ainda novidade. É possível que Gray tivesse visitado o St. Christophers Hospice, em Londres, e quiçá conhecido Cicely Saunders, enfermeira, assistente social e médica, considerada pioneira no campo dos cuidados paliativos na década de 1960.

É certo que Gray visitara um serviço hospitalar dedicado a cuidar de pessoas que iriam morrer, muito provavelmente acometidas por doenças tidas como terminais, sem possibilidade de cura ou controle suficientes para interromper sua evolução até a morte em tempo considerado inapropriado.

Chama a atenção dois aspectos principais: a preocupação com o alívio da dor, frequente entre portadores de câncer terminal e responsável por sofrimento importante, limitante e continuado, e o respeito ao paciente no que diz respeito a como deseja viver o tempo que lhe resta diante da doença grave que lhe ceifa anos de vida. 

Graças à literatura, é possível ensinar aos futuros médicos que o cuidado de pacientes considerados incuráveis ou terminais vai além do mero respeito às diretivas antecipadas que possibilitam ao paciente manifestar previamente sua vontade acerca de quais tratamentos médicos quer ou não se submeter caso futuramente estiver em estado de incapacidade. O trecho acima amplia o espectro de possibilidades dos cuidados paliativos para além dos tratamentos e documentos. Nos convida a conversar com o paciente sobre projetos de vida. 


As duas meninas e os livros

 

As duas belas meninas sentadas em cadeiras azuis, diante da pequena mesa verde, sob a copa de uma árvore resistente, robusta, considerando o solo ressequido e duro e o clima seco do mês de julho. É de manhã, há sol e as sombras de galhos e folhas contrastam como a claridade do chão. Estão numa pracinha da favela, em frente ao “postinho”, construído pelos moradores há pouco mais de um ano. Outra mesa, ao fundo, servira há pouco para uma consulta no improvisado consultório ao ar livre. O fotógrafo, professor de medicina, ocupa cadeira semelhante.

Sobre a mesa, livros que as meninas folheiam, lêem, trocam. De vez em quando trocam palavras. 

A cena captada e registrada poderia passar desapercebida, pois, à primeira vista, nada tem de extraordinária. Todavia, tornou-se incomum defrontar-se com crianças entretidas em livros e prosas, distantes de aparelhos celulares, mormente por tão longo tempo, visto que lá se vão uns quarenta minutos que ali estão a papear e a folhear as obras.

Os sapatos de Portinari


 A foto acima foi tirada durante visita à Casa de Portinari, museu localizado na cidade de Brodowski. É possível notar o reflexo do fotógrafo visitante no vidro, segurando seu celular na posição horizontal. Captou-se não apenas os objetos em exposição, mas também um pouco do processo da visita ao museu. 

Vê-se um par de calçados de cor caramelo, bem conservados, que pertenceram à Candido Portinari. O solado do pé direito é nitidamente mais grosso que o esquerdo, a fim de corrigir a marcha do artista de baixa estatura e que tinha a perna direita cerca de quatro centímetros mais curta que a outra. Não sei dizer se tal recurso era suficiente para que ele andasse sem coxear, sem dor. Indagações curiosas e que esqueci de compartilhar com o educador Vitor dos Santos Molinari, com quem tive um dedo de prosa durante a visita. Cerca de dez a quinze minutos agradáveis. Mas poderiam ter sido muitos mais. Aprendi com meu interlocutor que a mãe de Candinho tropeçara e caíra sobre o filho que segurava no colo. Daí a deformidade física que o incapacitou para o trabalho mais pesado, como o da lavoura de café, motivo pelo qual seus pais emigraram da Itália ao Brasil. A avó paterna, condoída com a fragilidade do franzino menino, o adotou de forma especial em seu coração. Dessa afetuosa aproximação floresceu relação duradoura que resultaria, muito mais tarde, na construção da Capela da Nonna, adornada com murais a têmpera, e determinaria a vertente sacra de sua obra. 

O tropeço da mãe, ao que parece, está na raiz da decisão de manter Candinho longe de atividades que necessitavam de força física e, por conseguinte, de sua incursão nas artes plásticas, paixão demonstrada desde a infância. 

O fascínio de um museu é como aquele par de sapatos expostos, cheio de histórias interessantes que nos ajudam a compreender melhor onde pisamos.