A história da invenção do estetoscópio costuma agradar aos alunos que a escutam pela primeira vez. O médico francês René Thèophile Marie Hyacinthe Laënnec (1781-1826), renomado cirurgião e clínico, trabalhava, em 1816, no Hospital Necker, em Paris. Valendo-se de sua vocação musical como flautista e de sua observação de duas crianças que brincavam num parque transmitindo e ouvindo sons através de um peça de madeira, solucionou o problema de examinar mais detalhadamente uma jovem cardiopata, sem aplicar diretamente sua orelha sobre o tórax dela, procedimento corriqueiro na medicina daquela época. Enrolou folhas de papel de forma a obter um cilindro sólido, aplicou uma das extremidades sobre a região precordial da paciente e escutou os batimentos cardíacos pela outra. Surpreendeu-se com a clareza dos sons e vislumbrou as possibilidades do método para o estudo de doenças cardíacas e pulmonares. Iniciou, então, o desenvolvimento de um aparelho cilíndrico de madeira com dimensões mais adequadas à sua função de exame do tórax. Estava criada a ausculta mediata, publicada no livro “De l’auscultation médiate ou Traité du diagnostic des maladies des pulmons et du coeur, fondé principalement sur le nouveau moyen d’exploration".
Essa história está presente em livros de história da medicina como “Medicine, an illustrated history”, de Albert S. Lyons e R. Joseph Petrucelli, ou “Medicine, a treasure of art and Literature”, entre outros.
Recomento o texto do Prof. Arary da Cruz Tiriba, intitulado “Nos remerciements, Laennec!”, publicado no Suplemento Cultural da Revista da Associação Paulista de Medicina de outubro de 2013, no qual ele, próximo de completar 90 anos, relata a história da invenção do estetoscópio a alunos de medicina com “colar profissional pendurado ao pescoço”, durante visita em enfermaria de hospital universitário.
No livro “Les trois médecins”, de Martin Winckler, me deparei com outra informação curiosa relatada na obra de Laënnec1: a extremidade do cilindro destinada a ser aplicado no tórax do paciente deve ser ligeiramente côncava a fim de não deslizar e melhor captar os sons. Esta cavidade, que a pele preenche muito facilmente, nunca forma um vazio, mesmo nos pontos mais planos do tórax. Quando há emagrecimento excessivo, com perda de massa dos músculos peitorais, a ponto de deixar entre as costelas sulcos suficientemente profundos, pode ocorrer de a extremidade do cilindro não ser ocupada em toda sua superfície. Nestes casos, estas fendas devem ser preenchidas com um pedaço de pano ou algodão coberto com um pano ou uma folha de papel. A mesma precaução deve ser tomada para a exploração do coração, em indivíduos cujo esterno é deprimido para trás em sua parte inferior, como acontece freqüentemente em sapateiros e em alguns outros artesãos. Portanto, diante de sapateiros com o tórax do tipo infundibuliforme, isto é, com depressão do terço inferior do esterno até o apêndice xifoide, haveria um cuidado a mais na aplicação do estetoscópio cilíndrico. Esta recomendação de Laënnec indicaria que tal deformidade torácica estaria relacionada a algumas ocupações artesanais, em especial a de sapateiro, o que poderia interessar aos médicos do trabalho.
Busquei no livro “As doenças dos trabalhadores”, escrito por Bernardino Ramazzini, em 1700, alguma informação sobre deformidade torácica em sapateiros. Nenhum dos capítulos foi dedicado a essa classe de trabalhadores. No capítulo “Doenças dos operários sedentários” há menção a sapateiros e alfaiates, os “artesãos de cadeira”, que “se tornam encurvados e corcundas”. “Mais que gibosos, de perfil parecem macacos; como nos macacos, suas vértebras dorsais igualmente se tornam salientes”. Sofrem de dores lombares. Contudo, não há nenhuma referência à deformidade do esterno.
No “Dicionário de Saúde e Segurança do trabalhador”, organizado por René Mendes, também não encontrei nenhum verbete relacionado a sapateiro ou a deformidade torácica relacionada ao trabalho.
A condição conhecida como “peito de sapateiro” ou “Pectus excavatum” ou “Pectus Carinatum” aparece em obras de ortopedia e são citadas como causas possíveis a hereditariedade, escoliose, cifose e desproporção entre o crescimento do esterno e dos arcos costais.
A expressão “peito de sapateiro” e a menção aos sapateiros e outros artesãos como portadores de deformidade torácica caracterizada pelo afundamento do esterno na obra de Laënnec, poderia indicar duas condições próprias dessa ocupação no passado: um processo de trabalho no qual o sapateiro apoiasse vigorosamente um aparelho ou o próprio sapato contra seu esterno e, talvez, o trabalho infantil, isto é, o início da atividade antes do término do crescimento da caixa torácica, o que acarretaria a deformidade descrita, decorrente, portanto, da limitação do avanço anterior do esterno durante o crescimento da criança.
O esclarecimento da questão poderá vir de conversas com colegas da Saúde do Trabalhador e com sapateiros.
Por enquanto, resta a contribuição provocativa do tisiologista Laënnec para a história da Saúde do Trabalhador. Seja pela menção especial aos sapateiros no momento de descrever o uso do estetoscópio cilíndrico seja porque ele faleceu de tuberculose aos 44 anos, muito provavelmente adquirida de um paciente que ele cuidou durante suas atividades profissionais.
1. “L’extrémité du cylindre destinée à être appliquée sur la poitrine du malade, c’est-à-dire celle qui est formée par l’embout ou obturateur, doit être très légèrement concave; elle en est moins sujette à vaciller, et cette cavité, que la peau remplit très facilement, ne forme jamais de vide, même sur les points les plus plats de la poitrine. Lorsqu’un amaigrissement excessif a détruit les muscles pectoraux, au point de laisser entre les côtes des gouttières assez profondes pour que l’extrémité du cylindre ne puisse porter de toute sa surface, on remplit ces intervalles de charpie ou de coton recouvert d’un linge ou d’une feuille de papier. La même précaution doit être prise pour l’exploration du coeur, chez les sujets dont le sternum est enfoncé en arrière dans sa partie inférieure, comme il arrive fréquemment chez les cordonniers et chez quelques autres artisans."
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