domingo, 26 de abril de 2020

Piranha

As manhãs de outono costumam ser bonitas, mesmo durante a triste pandemia. Céu muito azul, sem nuvens e temperatura agradável. Estávamos na ocupação, onde todas as casas são de madeira e as ruas estreitas e tortuosas. O sr. Valdimiro nos aguardava sentado numa cadeira, olhando para a sua casa. Outras duas cadeiras estavam destinadas a mim e a aluna do 4˚ ano de medicina. “Consultório" ao ar livre, sombreado e silencioso. Condições ideias para ouvir sua história de vida e de suas doenças. 
Aquele homem pálido, emagrecido, com pouca massa muscular perdera completamente a visão há cerca de 5 meses. Custei a acreditar no que li na carteira de identidade: aquele “idoso" era cinco anos mais novo que eu! 
A catarata atingira os dois olhos. A perda de transparência do cristalino deixava claro a falência do sistema de saúde no controle do diabetes e no tratamento da doença ocular comum entre pessoas portadoras dessa doença e/ou tabagistas, como o sr. Valdimiro. Dedicava-se com afinco ao próprio tratamento, proibindo-se a si mesmo a ingesta de açucar e tomando os três tipos de remédios receitados pelos doutores. No entanto, não estava nada bem. O apetite estava péssimo e o peso diminuía à medida que os músculos murchavam. O aparelho digestivo não colaborava: ora vômito ora diarreia ora a barriga distendida. Com muito esforço fazia meia refeição ao dia. A glicemia capilar, aferida pelo aparelho que guarda em casa e que lê a gota de sangue que obtém furando o dedo diariamente, insiste em permanecer elevada.
Um pouco de paciência para ler com ele as bulas dos remédios e tivemos a certeza que a diminuição do apetite, a perda de peso e os sintomas gastrintestinais poderiam ser reações adversas aos remédios. Mais uma vítima da iatrogenia.
A cirurgia ocular já havia sido suspensa uma vez, pois o oftalmologista não opera se o diabetes estiver fora de controle. Como isto não aconteceu a visão sumiu. E com ela a alegria de viver. “Doutor, não dá pra internar uns dois ou três dias, compensar o diabetes e operar?”. 
A cegueira fôra atribuída ao diabetes e ao tabagismo. Mas aparentemente era fruto também da desigualdade social, iniquidade, pobreza, protocolos biomédicos e falha do cuidado em rede.
Enquanto eu escrevia o caso, já em casa, para posteriormente compartilhar com a equipe de saúde, assistia a um documentário na televisão. Em um aquário norteamericano, uma equipe de veterinários dedicava-se a preparar um pinguim chamado Charlie para a cirurgia de catarata. Impossível não se questionar sobre os valores presentes na nossa sociedade ocidental. Nestas primeiras décadas do século XXI, aquele pinguim tinha mais chance de chegar à cirurgia de catarata do que aquele simpático, educado e resignado cidadão pernambucano. Um misto de tristeza, revolta e inconformismo invadiu-me. No entanto, foi a cirurgia de uma piranha residente no mesmo aquário que me impeliu a escrever esta crônica.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Tuberculose tostão

Eu não apanhei a gripe de18. Mamãe me mandou para São José dos Campos. Eu fugi da gripe. Fiquei sozinho num hospital de tuberculosos, o Instituto São Geraldo, que era do Jaime Ferreira, casado com minha prima. Até a empregada caiu de gripe; aprendi a fazer de tudo, até cozinhar.
A tuberculose não pega, tanto que comecei a namorar com uma tuberculosa, dava cada beijo nela e não peguei nada. Ela tinha sido casada com Fosco Candini, que era um cantor de operetas. E uma moça que sabia que ia morrer, me disse: “Seu Abelzinho, eu sou tuberculosa, ninguém gosta de mim, mas eu gostaria de que alguém me desse um beijo”. “Então, venha cá.” E lhe dei um beijo de desentupir pia. Eu tinha quinze anos nesse tempo.
O Huygnens, que era um dos hóspedes, descobriu-se que não era tuberculoso, ele estava lá era fugido; tinha dado um desfalque no Banco Noroeste.
A comida que eu comia lá era a mesma dos tuberculosos do sanatório, e nunca pegou. Os parentes proibiam que se desse dinheiro para as moças tuberculosas, porque elas compravam bebida com esse dinheiro. Um dia, no quarto de uma moça, debaixo da cama, achei uma garrafa de álcool. Ela, com o pretexto de tomar banho de álcool (os tuberculosos naquele tempo não tomavam banho comum, de água), guardava debaixo da cama aquele garrafão e bebia o álcool! De tão desesperadas, elas bebiam mesmo. E acabavam morrendo. E lembro agora uma história de família.
De Campos do Jordão eu tenho uma lembrança nítida. Quando eu tinha oito anos, fui passar uns tempos lá com minha prima, a Nadir Galvão Bueno. Foi então que chegou a Campos um jovem alto, grande, cabelos bastos negros, o homem mais bonito que eu conheci, uma dentadura perfeita, uma beleza sem defeito. Mas subiu de maca, veio para morrer. Era filho do armador Mateus Ferreira, do Rio de Janeiro. Subiu para morrer. No fim de uma semana, quem tratava dele já não era a enfermeira, era essa minha prima. E ela acabou casando com ele. Todo mundo achou que era loucura casar com um homem que estava para morrer. Pois olhe, o sr. Jaime Ferreira não morreu, ficou dois ou três meses em Campos do Jordão, desceram ele e a mulher pra São José dos Campos e montaram lá o Instituto São Geraldo, a primeira pensão de tuberculosos. São Geraldo é o protetor dos tuberculosos. Tiveram um filho que até os cinco anos era uma beleza de menino, mas aos seis anos teve um ataque epiléptico. Quando ele começava a gaguejar, pê… pê… pá… pá… pá…, a gente mandava ele correr pra casa porque era certo que vinha o ataque epiléptico. E não há remédio para este mal. Só esperar aquele estrebucho e deixa passar, depois ele se sentia feliz e descansado.
O tuberculoso pode fazer tudo, menos vir para São Paulo. Esse meu parente era tuberculoso dos dois pulmões, fez uma toracoplastia, cortou as costas e pôs duas bolinhas de pingue-pongue no lugar das cavernas. Mais tarde veio para São Paulo magro, torto e morreu. Deu um tiro no ouvido, não aguentava mais viver.
Os tuberculosos tinham características interessantes. Uma delas era usar uma escarradeira pequenina de bolso, azulzinha, um negócio horroroso. Eles faziam hé… hé… hé… cuspiam lá dentro e depois guardavam no bolso. Mas depois descobriu-se que não era necessário usar as escarradeiras fora do sanatório, só dentro, porque ao ar livre os raios ultravioleta em quinze minutos eliminam o bacilo, isso por causa da situação de São José dos Campos. Não é a altura, pouco mais que a de São Paulo, é a situação da cidade. São Paulo tem 670 e São José 674 metros de altura, mas tem raios ultravioleta. Por isso deixou de existir lá a peste branca.
A tuberculose é curável: é só comer bastante, fazer repouso e tomar cuidado com o sol. A característica tuberculoso, naquele tempo, era andar sempre de guarda-chuva, não por causa da chuva, mas para não tomar sol. O sol pode fazer aumentar a infecção e aí aparece a "vermelhinha". Eles brincavam um com os outros: "Eu estou ficando rico, tinha só um tostão e já estou agora com duzentão. Mas ainda chego lá, no quatrocentão. ‘E a vermelhinha?’ Bom, a vermelhinha eu já estou com ela”. O tostão, o duzentão, eram o tamanho das cavernas que eles tinham no pulmão. E a vermelhinha era a febre acompanhada de sangue quando eles cuspiam.
No sanatório, quando um doente passava mal acendia uma luzinha vermelha. Meu primo pedia: “Você não quer atender para mim”. Deixava toda a aparelhagem ali: algodão, gelo e emetina Bruneau. Tocava e lá ia eu atender a moça. Quanta moça bonita! "Moça, o que houve?” Era aquela sangueira no chão. Era uma hemoptise violenta. Então eu sapecava a emetina Bruneau, gelo na boca e ficava esperando. Muitas se salvaram. Outras, no dia seguinte, morreram. 


(Bosi, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Sr. Abel. p. 190-192)

Vidraria e tuberculose

"O Matarazzo começou vendendo banha, todos sabem. Depois latas de banha. E depois fez as garrafas, a Vidraria Santa Marina: quantos meninos ficaram tuberculosos soprando a areia para virar vidro!" (Bosi, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Sr. Abel. p. 187)

Esse pequeno trecho das lembranças do Sr. Abel encerra em si muita informação e pode ser observado através de diferentes lentes. Por exemplo, a lente da história da migração italiana para São Paulo, ou da história da gastronomia e uso de banha, ou ainda do trabalho infantil. Mas escolhi a lente da Saúde do Trabalhador e, mais especificamente, da silicose muitas vezes confundida com tuberculose. 
Em 2008, o médico do trabalho Bernardo Bedrikow escreveu "Lembrança do Jaçanã”. "Nessa crônica, relembra a instalação de enfermaria própria para casos de silicose no Hospital São Luiz Gonzaga, no bairro do Jaçanã, em São Paulo, na década de 1940. Esse hospital destinava-se principalmente ao cuidado de enfermos com tuberculose, mas o surgimento de número expressivo de pessoas acometidas pela pneumoconiose, muitas vezes confundida com tuberculose ou associada a ela, e a presença de várias empresas do ramo de cerâmicas, vidrarias e produção de sabões abrasivos, entre outras (produtoras de poeira no local de trabalho) levaram à criação da referida enfermaria. (Rev Bras Med Trab.2015;13(1):43-57) 



sexta-feira, 10 de abril de 2020

Carta de idoso

Campinas, 10 de abril de 2020.

Sr. Jair Messias Bolsonaro
Presidente do Brasil

Prezado Sr. Jair,
Sou idosa e quero continuar vivendo. Nasci em Lucca, cidade italiana da região da Toscana, no ano de 1926. Provavelmente, o senhor, que é rico, a conhece. Eu, nunca mais voltei à Italia e guardo apenas vaga lembrança da Chiesa di San Michele in Foro. Foi o último lugar que estivemos antes de emigrare in Brasile. Meu pai fez questão de reunir a família para rezar diante da Madonna con Bambino.  A travessia do Atlântico foi sofrida. Não tivemos sorte, pois fomos atingidos por tempestades violentas e tivemos medo de que o vapor afundasse. Os passageiros passavam mal e muitos vomitavam. Como dormíamos em beliches muito próximos uns dos outros, os roncos e vômitos não respeitavam fronteiras e, amiúde, alcançavam os colchões vizinhos. Quando a maré sossegava, as mulheres corriam lavar a terceira classe. A viagem demorou cerca de um mês, com escalas em Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Finalmente chegamos em Santos. Havia ainda o trem, também apinhado de gente. Na Hospedaria, em São Paulo, tomamos banho, almoçamos e nossos pertences foram desinfectados. Nessa ocasião, São Paulo contava com pouco mais de um milhão de habitantes. Mas não nos demoramos por lá, pois meu pai conseguiu trabalho numa fazenda na região de Campinas, bem menor, com pouco menos de cento e cinquenta mil almas. O primeiro lugar que meu pai nos levou foi à Chiesa Nostra Signora della Concezione. Fomos agradecer e rezar. Estávamos magros, mas unidos e cheios de esperança. Nunca deixei de agradecer, mas, anos depois, passei a frequentar a Basílica do Carmo, pois o som do Organo a canne me deixa mais perto de Deus. Agora, mais perto do fim da vida, fico muito emocionada quando a missa é acompanhada pela música do órgão Tamburini e as vozes do coral. Não consigo impedir que lágrimas escorram. Mas são de emoção e não de tristeza. Escorrem porque sinto que Deus está na música que penetra minha alma.
Escolhi ser professora. O brilho nos olhos das crianças que ouviam as histórias que eu lia e que descobriam a beleza da literatura infantil, das poesias, dos mistérios da natureza, desvendados pela ciência, era meu maior pagamento. Só quem teve o privilégio de ser educador sabe do que estou falando. Acompanhei os jovens trocarem as calças curtas por calças longas, se apaixonarem e sofrerem por amor. Eu estava lá para ouvi-los. Alguns chegavam magros, com fome. Olhos tristes. Com certeza a situação estava difícil em casa. Eu me esforçava para não deixar as lágrimas sairem; estas, sim, de tristeza. Só vazavam em casa, quando eu me fechava no quarto à noite e rememorava o dia. Era um misto de tristeza e revolta com a desigualdade deste lindo país que me acolheu quando eu também aqui cheguei criança. Às vezes, eu comprava pão para elas, escondido do diretor da escola e de meu marido.
Muitas dessas crianças têm hoje, senhor presidente, a sua idade. Algumas ficaram ricas como o senhor e mandam no país. As mesmas crianças de ontem, que fizeram lágrimas escorrer no meu rosto, tanto de emoção como de tristeza, parecem não se importar com os velhos. Deixei de assistir televisão, tamanha minha tristeza diante das falas relativas à epidemia. “A doença não é tão grave! A maioria das pessoas que vai morrer são idosos!”
Peço desculpas, senhor presidente, mas não posso continuar esta carta. Minhas mãos tremem. Mas gostaria de fazer-lhe um pedido final. Nos dê a chance de viver. Não quero morrer agora, pois ainda posso ensinar muito a vocês. 
Rogo ao médico que cuidar de mim durante minha passagem que,  se eu morrer infectada pelo Coronavírus, sem acesso a terapia intensiva e respiradores, coloque no meu atestado de óbito que a causa mortis foi desigualdade social e desvalorização do idoso. Por favor, não reduza minha morte à COVID-19.  

Respeitosamente,


Maria di Lucca

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Difruço

- Ô Bésa! Cê tá aí? - disse Gustinha, olhando por cima do muro, procurando pela vizinha Isabel.
- Gustinha, tô aqui. - respondeu a vizinha. 
- Por que o povo tá tudo mascrado? Ocê viu? Tem umas cabôcas que cobre a boca, nariz e até os cabelo. Será que tão trocando de religião, igual as muié árabe?
- Gustinha! Você não está sabendo? É a gripe?
- Iapôe? É difruço, é? E carece essas máscra? Mia fia ligó e disse que escutchó o presidente falá que é só uma gripezinha.
- Ele fala isso porque não morreu ninguém da família dele. Olha o que está acontecendo na Itália e na Espanha. Muitas pessoas morrendo. Acho mais seguro dar ouvido aos médicos.
- Arre-égua! Esse miserave qué matá os pobre? Eu vou é segui os conseio dos dotô. Meu falecido Sinval passó dessa pra mió pruquê nunca foi nas consurta com os dotô. Aquele caba abestado estribuchó com dor no peitcho. Eu vou correndo na loja comprá uma máscra. 
- É melhor você não sair de casa. A gripe é mais grave nos idosos e passa fácil de uma pessoa pra outra. Também não pode cumprimentar com a mão. Tão dizendo pra ficar em casa.
- E é? É mió sossegá em casa?
- Claro. Você que é idosa, principalmente. Fique em casa. Eu compro as coisas pra você. É só mandar a lista por cima do muro.
- Obrigado, Bésa. Ocê é um anjo pra mim. Eu tô é ficando avechada e barriada, com muito medo.
- Gustinha, liga pros seus filhos e fala pra eles ficarem em casa também.
- Eita lasquera, essa peste da moléstia me fez matutá do meu primo Severino. Aquele picolé de onça dos cabelo pichainho e zarôio. Estudô medicina lá na facurdade de Salvador, a mais antiga do Brasil, como ele gostava de dizer. Ele se foi ano passado com 90 anos. Vivia frébendo. Acho que era maléita. Ele receitava uns tratamento pro difruço que aprendeu num livro francês, muito bão.
- O que ele indicava para a gripe?
- Sei não. Mas tenho o livro guardado lá dentro. Vou pegá pra ocê lê pra nóis.
- Tá bom. Eu espero. 
- É esse aqui. Bonito, né? Lê pra nóis.
- Vou ler. Aqui diz que o doente com gripe precisa ficar isolado e não pode receber visitas. As pessoas que convivem com o doente devem fazer várias vezes ao dia a desinfecção rinofaríngea, isto é, instilar óleo nas narinas, e lavagem da garganta e boca com ácido salicílico, borato de sódio, fenosalil, Licor de Labarraca. Gargarejo é bom. Nas famílias com vários doentes, separar os casos simples dos casos complicados.
- Oxente! Compricado mermo. O que mais?
- Ferver água com folha de eucalipto no quarto do doente. Fricções estimulantes com alcoolato de lavanda ou água de Colônia.
- Eita! Cheirinho bom vai ficá no quarto. Vou fazer isso no meu.
- Ah, mas isso que vou ler agora você não pode fazer, tá! Injeções tônicas subcutâneas à base de arsênico e estricnina. 
- Bésa, eu tô querendo uma injeção pro meu espinhaço que me aperrea todo dia. Será que essas que ocê leu tira pra sempre minha dor?
 


Campinas, 6 de abril de 2020.

domingo, 5 de abril de 2020

A epidemia de perda de memória

A perda de memória tornou-se problema de saúde pública no século XXI. Há mais de 50 anos, Gabriel García Márquez dedicou páginas a uma epidemia de insônia e perda de memória, em Cem Anos de Solidão1:
"No domingo, de fato, Rebeca chegou. Ela não tinha mais de onze anos de idade". (p.59)
"Uma noite, por volta da época em que Rebecca foi curada do vício de comer terra e foi levada a dormir no quarto das outras crianças, a índia que dormia com elas acordou por acaso e ouviu um estranho barulho intermitente no canto. Ela sentou-se em alarme, acreditando que um animal tinha entrado na sala, e depois viu Rebecca na cadeira de balanço, chupando o polegar e os olhos dela iluminados como os de um gato no escuro. Surpresos de terror, perturbados pela inevitabilidade do seu destino, Visitación reconheceu nesses olhos os sintomas da doença, cuja ameaça a tinha forçado a ela e ao seu irmão a banirem-se para sempre de um reino milenar em que eram príncipes. Era a praga da insônia. ...] Mas a índia explicou-lhes que o mais assustador da doença da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço, mas a sua inexorável evolução para uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Ela quis dizer que quando o doente se habituava ao seu estado de vigília, as memórias da infância começavam a ser apagadas da sua memória, depois o nome e a noção das coisas e, finalmente, a identidade das pessoas e até mesmo a consciência do seu próprio ser, até que se afundava numa espécie de idiotice sem passado"(p.63)
"Quando José Arcadio Buendía percebeu que a praga tinha invadido a cidade, reuniu os chefes de família para lhes explicar o que sabia sobre a doença da insônia e foram acordadas medidas para evitar que o flagelo se propagasse a outras cidades do pântano. Assim, das cabras foram retirados os sinos que os árabes trocavam por araras, e foram colocadas à entrada da aldeia, à disposição daqueles que ignoravam os conselhos e os apelos das sentinelas e insistiam em visitar a população. Todos os estranhos que nessa altura andavam pelas ruas de Macondo tinham de tocar o seu pequeno sino para que os doentes soubessem que eram saudáveis. Não lhes foi permitido comer ou beber nada durante a sua estadia, pois não havia dúvida de que a doença só era transmitida pela boca, e todas as coisas para comer e beber estavam contaminadas com insônia. Desta forma, a peste foi mantida confinada ao perímetro da população. Tão eficaz foi a quarentena que chegou o dia em que a situação de emergência foi tomada como natural, e a vida foi organizada de modo a que o trabalho recuperasse o seu ritmo e ninguém mais tivesse de se preocupar com o hábito inútil de dormir.
Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que os deveria defender durante vários meses das evasões da memória. Ele descobriu-a por acaso. Perito em insônia, tendo sido um dos primeiros, tinha aprendido a arte da prataria até à perfeição. Um dia estava à procura da pequena bigorna que usava para laminar os metais, e não se lembrava do seu nome. O seu pai disse-lhe: <<tas>>. Aureliano escreveu o nome num papel que colou na base da pequena bigorna: tas. Dessa forma, não o esqueceria no futuro. Não lhe ocorreu que esta fosse a primeira manifestação de esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas alguns dias depois descobriu que tinha dificuldade em se lembrar de quase tudo no laboratório. Por isso, marcou-os com o respectivo nome, para que lhe bastasse ler a inscrição para os identificar. Quando o seu pai comunicou o seu alarme por ter esquecido até os fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano explicou-lhe o seu método e José Arcadio Buendía pô-lo em prática em toda a casa e, mais tarde, impô-lo a toda a gente. Com um hissopo tintado ele marcou cada coisa com um nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, frigideira. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabra, porco, galinha, mandioca, malanga, guinéu. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que um dia poderia chegar em que as coisas seriam reconhecidas pelas suas inscrições, mas a sua utilidade não seria lembrada. Por isso, foi mais explícito. O sinal pendurado no pescoço da vaca foi um exemplo da forma como os habitantes de Macondo estavam preparados para lutar contra o esquecimento: esta é a vaca, deve ser ordenhada todas as manhãs para produzir leite e o leite deve ser fervido para misturar com o café e fazer café com leite" (p.66-67) 
Nesse trecho de sua obra, García Marquez nos apresenta de forma fantasiosa dois temas muito reais e de suma importância para a sociedade deste primeiro quarto do século XXI: o aumento de pessoas com comprometimento da memória e o enfrentamento de epidemias por parte de coletividades.
O desejável e louvável aumento da sobrevida das pessoas onde houve melhora das condições de vida e do acesso a ações e novos recursos de saúde carrega consigo o desafio de enfrentar condições prevalentes em idosos, sobretudo entre os muito idosos. Entre estas, a perda de memória, frequentemente associada à doença de Alzheimer, ocupa posição de destaque e exige preparo, dedicação, paciência e resiliência emocional de familiares e cuidadores profissionais. Assim como descrito no texto do escritor colombiano a perda de memória é processo progressivo e não instantâneo. Começa-se perdendo apenas um tipo de memória e o indivíduo tem consciência disso, o que lhe permite lançar mão de estratégias tais como escrever nomes e explicações que podem ser consultados. Alterações do sono também são frequentes nesses pacientes acometidos por perda de memória e isso também foi lembrado pelo escritor. Em fases muito iniciais a insônia pode ser até vantajosa, pois aumenta a produtividade e não traz maiores prejuízos. 
Essa passagem de "Cem anos de solidão” nos deixa curiosos sobre o que teria inspirado García Marques a escrever sobre uma epidemia de perda de memória. Teria ele convivido com algum familiar ou conhecido acometido por alguma síndrome demencial?
No que se refere à epidemia, García Marques escreve sobre medidas para prevenir o contágio de outras pessoas ou comunidades, sobre isolamento social e quarentena, e sobre mudanças no cotidiano a partir de epidemias. Os mesmos temas que invadem diariamente nossas redes sociais e mídias em tempos de pandemia por COVID-19. Ele menciona sentinelas, pessoas que desobedeciam recomendações e insistiam em manter contato com adoecidos, teoria sobre o mecanismo de contágio (por boca, por alimentos e bebidas contaminados) e o sucesso da quarentena, mantendo a peste restrita ao perímetro da cidade. 
Em 2020, o novo Coronavírus alastrou-se rapidamente pelos cinco continentes e exigiu medidas semelhantes àquelas descritas em Cem anos de solidão, e os comportamentos humanos não foram diferentes, principalmente no que se refere à determinação de isolamento dos enfermos, quarentena de cidades e desobediência de algumas pessoas.
Uma epidemia não se limita à ciência e medicina, mas diz respeito à vários aspectos da vida das pessoas, inclusive à literatura.    

1) Marquez GG. Cem anos de solidão. Havana: Ediciones Huracán, 1979.

Rubens Bedrikow

Campinas, 5 de março de 2020.