sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Vacinação obrigatória: vale a pena?

 



Dentre as várias polêmicas que a pandemia de Covid-19 gerou no Brasil, muitas dizem respeito à vacinação e abrangem questões como qual vacina o país deveria adotar, quais grupos seriam considerados prioritários para receber as primeiras doses e se a vacinação deveria ser obrigatória ou não. Neste último caso, a questão foi levada para apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF) cujo Plenário decidiu


que o Estado pode determinar aos cidadãos que se submetam, compulsoriamente, à vacinação contra a Covid-19, prevista na Lei 13.979/2020. De acordo com a decisão, o Estado pode impor aos cidadãos que recusem a vacinação as medidas restritivas previstas em lei (multa, impedimento de frequentar determinados lugares, fazer matrícula em escola), mas não pode fazer a imunização à força. (STF, 2020) 


Imposição legal acompanhada de medidas restritivas ou punições, justificadas pela primazia do direito coletivo em detrimento de direitos individuais, não é novidade nem é recente na história da Saúde Pública brasileira, em particular no caso da vacinação. Exemplo largamente conhecido é o da obrigatoriedade da vacinação contra a varíola humana no início do século XX e que desencadeou resposta contundente da população no episódio que ficou conhecido como Revolta da Vacina, em 1904. (Fundação Oswaldo Cruz, 2003, p. 62) É coerente supor que ao se revisitar a história da relação entre autoridades e população em torno da vacinação antivariólica desde o final do século XVIII possamos analisar melhor a decisão do STF e avaliar as chances de sucesso da mesma. Interessa saber em que medida decisões como essa do STF contribuíram para a erradicação da varíola no planeta, em 1980, e poderiam fazer o mesmo com a Covid-19.  

A varíola, moléstia infecciosa aguda, determinada por um vírus específico, constituiu um dos maiores flagelos da humanidade antes da descoberta da vacina. (Gebara, 1957, p. 72) O período de incubação durava de 10 a 15 dias e suas manifestações clínicas eram 


febre alta, quebrantamento geral, cefaléia, lombalgia, inapetência, náuseas, vômitos e exantema inicial com duração de 1 a 2 dias. A partir do terceiro dia, surgem as máculas de côr vermelho-pálida, que se estendem pelo corpo todo. Essas máculas duram em média um dia e se transformam em pápulas. Estas, após dois dias, isto é, no 7˚ dia, evoluem para a fase de vesículas, cheias de um líquido claro, a “linfa”.  Apresentam uma depressão na sua parte central, que é a umbilicação da vesícula. Em tôrno da vesícula aparece um halo avermelhado. O líqüido do interior das vesículas vai se tornando cada vez mais turvo, assumindo um aspecto purulento, constituindo as pústulas. Na parte central da pústula a umbilicação se acentua rapidamente. A partir do 11˚ ou 12˚ dia, o pus do interior das pústulas começa a se reabsorver, estas tornam-se cada vez mais achatadas e inicia-se a fase de dessecação, aparecendo então as crôstas, que vão caindo lentamente. As lesões da varíola apresentam-se sempre no mesmo estádio evolutivo, isto é, são uniformes, principalmente se considerarmos determinado segmento do corpo. São centrífugas, atingindo de preferência a face e as extremidades, podendo aparecer também nas mãos. (Gebara, 1957, p. 72) 


Em razão de seu grande poder de contágio e elevada mortalidade foi responsável, isoladamente, por mais mortes do que todas as demais doenças reunidas durante os três primeiros séculos do Brasil colônia. A primeira epidemia ocorreu na Bahia em 1563 e avançou por todo o território colonizado. (Santos Filho, 1977, p. 157-158) As principais vítimas foram os índios cujas mortes chegaram a centenas de milhares, muitas delas provocadas intencionalmente pelos colonizadores com o intuito de exterminá-los de forma rápida e fácil. “Roupas e pertences de bexiguentos eram introduzidos nos aldeamentos ameríndios para obtenção do contágio." (Santos Filho, 1977, p. 156) Ao que parece, a varíola foi introduzida no Brasil pelos navios negreiros e, provavelmente, repetidos surtos foram decorrentes da entrada continuada de pessoas contaminadas, na colônia. (Sigaud  JFX, 2009, p. 150) Auguste de Saint-Hilaire, ao viajar à Província de São Paulo entre 1816 e 1822, observou que São Paulo recebia, "constantemente, reforços africanos”, numa alusão a esse fluxo migratório contínuo que caracterizou grande parte do século XIX. (Saint-Hilaire, 1940, p. 89). Em outras palavras, graças ao crescimento da produção e exportação cafeeira, a doença foi introduzida repetidas vezes no território brasileiro por negros escravos e europeus. 

Uma das primeiras medidas adotadas com o objetivo de impedir a entrada de viajantes contaminados foi a quarentena nos portos durante alguns dias. Contudo, tal medida não surtiu o efeito desejado, pois navios negreiros atracavam clandestinamente em pequenas enseadas não fiscalizadas pelas autoridades. (Santos Filho, 1977, p. 160) Outras providências foram sendo colocadas em prática em diferentes vilas e cidades a fim de conter os estragos da varíola: quarentena para todos os negros recém-chegados da África, isolamento de doentes em casas afastadas do centro, multa e prisão de quem abrigasse ou escondesse em sua casa pessoa enferma de varíola, principalmente negra, e determinação de que apenas pessoas que já tivessem tido a doença "poderiam cuidar e tratar dos bexiguentos”. (Santos Filho, 1977, p. 160, 270) Não obstante tamanho esforço, os surtos epidêmicos se sucediam, muitas vidas eram ceifadas e a economia sofria. Foi nesse contexto que a vacina de Edward Jenner chegou, no final do século XVIII, trazendo, enfim, esperança de controle do quadro sanitário variólico.  

É interessante mencionar experiência isolada e anterior ao trabalho de Jenner realizada por um frade carmelita, por volta de 1730, no Pará. O religioso havia observado que doentes recuperados da varíola dificilmente voltavam a contrair a doença e teria, então, decidido inocular intencionalmente o pus das pústulas em pessoas sãs com o objetivo de protegê-las da doença. Efetivamente, esses indivíduos não adoeceram ou apresentaram apenas uma forma branda da doença. Tal informação consta no livro Relation Abrégée d’un voyage fait dans l’intérieur de l’Amérique Méridionale depuis la Côte de la Mer du Sud, jusqu’aux Côtes du Brésil, de Charles Marie de La Condamine, publicado em Paris, em 1745. Portanto, o frade carmelita teria empregado o método de Jenner mais de 60 anos antes do cientista inglês. (Santos Filho, 1977, p. 33, 161, 270)

Jenner nasceu em 1749, em Berkeley, região de Gloucestershire, Inglaterra, onde era frequente o gado adoecer de cowpox, doença semelhante à varíola humana (smallpox), caracterizada por vesículas e pústulas no úbere. As pessoas que ordenhavam as vacas desenvolviam lesões semelhantes nas mãos, mas que desapareciam espontaneamente. A população local sabia que essas pessoas ficavam protegidas da varíola humana. Certa vez, enquanto estagiava com o reputado médico Ludlow, em Sodbury, Jenner ouviu uma paciente dizer que não poderia ter smallpox, pois já tivera cowpox. “Esta frase ficou retida em sua memória e foi o leitmotiv de todas as suas observações em anos posteriores.” (Rezende, 2009, p.228-229) Suas observações prosseguiram por cerca de 20 anos até que, em 1796, colheu a linfa de lesões da mão direita de Sara Neles e inoculou na pele do braço de Jacobo Phipps, um menino de 8 anos. Após 6 semanas, inoculou o pus da varíola humana no menino, que não adquiriu a doença. Foi assim que surgiu a vacina antivariólica.

No início, houve muita resistência e crítica ao método de Jenner que previa a inoculação no ser humano de germe responsável por doença animal. “Apesar disso, a vacinação jenneriana difundiu-se por todo o mundo. Muito contribuiu para a sua credibilidade a decisão de Napoleão Bonaparte, que mandou vacinar o exército francês e promulgou um decreto a favor do novo método.” (Rezende, 2009, p.230)

Após o anúncio internacional da vacinação de Jenner, vários países adotaram o procedimento, inclusive o governo português que recomendou providências aos governadores das capitanias brasileiras. A primeira vacinação antivariólica na colônia ocorreu em 1798 no Rio de Janeiro. 

Aqui também, o procedimento enfrentou grande resistência da população e as autoridades tiveram que adotar medidas legais que obrigassem as pessoas a se vacinar. Em 1805, governadores de algumas capitanias tornaram obrigatória a vacinação. O de São Paulo, Antônio José de Franca e Horta, ordenou aos capitães-mores das vilas que reunissem no edifício da Câmara, ou da Matriz, os chefes de família, com todos os parentes, agregados e escravos, para se deixarem vacinar. Os desobedientes seriam multados e presos à ordem do governador, obtendo a liberdade apenas após a inoculação, na cadeia. Havia pesadas multas para os responsáveis que não vacinassem as crianças. Em 1846, um decreto tornou obrigatória a vacinação em todo o império. Ele se acompanhou de um Regulamento que determinava que “todas as pessoas residentes no Império serão obrigadas a vacinar-se, qualquer que seja a sua idade, sexo, estado e condição. Excetuam-se somente os que mostrarem ter tido vacina regular ou bexigas verdadeiras”. Ainda assim, o povo tudo fez para escapar da vacinação.  (Rezende, 2009; Santos Filho, 1977) A eficácia de medidas impositivas e/ou punitivas foi baixa se considerarmos que o país não se livrou dos surtos epidêmicos. Tanto é assim que a doença permanecia como grande desafio a ser debelado, ao lado da febre amarela e peste, quando Oswaldo Cruz foi nomeado para a Diretoria Geral de Saúde Pública, em 23 de março de 1903. (Fundação Oswaldo Cruz, 2003, p. 33; Fávero, 1981, p. 228)  

A maneira como a população, imprensa e políticos têm reagido às sucessivas providências dos governos federal e estaduais no sentido de debelar a pandemia de Covid-19 pode ser melhor entendida a partir da análise dos fatos que cercaram a atuação de Oswaldo Cruz no início do século XX. Nesse sentido, parece crucial resgatar elementos de sua biografia.

Oswaldo Cruz nasceu a 5 de agosto de 1872 em São Luiz do Paraitinga-SP, primogênito do médico Bento Gonçalves Cruz e de Amália Taborda Bulhões Cruz. Aos cinco anos de idade, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro e aos quatorze ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Formou-se em 1892 após defender a tese de doutoramento intitulada “A veiculação microbiana pelas águas”. Durante mais de dois anos estagiou no Instituto Pasteur em Paris, onde especializou-se em microbiologia e soroterapia. De volta ao Brasil, em 1899, reassumiu suas atividades na Policlínica Geral do Rio de Janeiro e no ambulatório da Fábrica de Tecidos Corcovado, sendo, em seguida, convidado a participar do combate à peste bubônica em Santos. Disso resultou a criação do Instituto Soroterápico do Estado de São Paulo (mais tarde Instituto Butantan) e do Instituto Soroterápico Federal (de Manguinhos), do qual Oswaldo Cruz assumiu a diretoria técnica e, a partir de 1902, a diretoria geral. Em março de 1903,  passou a ocupar a direção do Serviço de Saúde Federal ou Diretoria Geral de Saúde Pública, com o importante respaldo do presidente Rodrigues Alves. Nesse cargo, coordenou as ações de limpeza urbana - destruição de focos de larvas, limpeza de calhas, telhados, ralos, tinas, caixas d’água, tanques e sarjetas, e retirada de lixo, necessárias para o controle da epidemia de febre amarela. Concomitantemente, desencadeou uma verdadeira caça aos ratos, hospedeiros de pulgas que transmitem a peste bubônica através de suas picadas, com a colaboração dos cidadãos, que recebiam recompensa em dinheiro cada vez que entregassem roedores. Essa ação, associada ao uso do soro antipestoso, foi coroada de rápido sucesso. Os resultados positivos alcançados na luta contra a febre amarela e a peste lhe trouxeram prestígio e segurança para impor medidas contra a varíola, impopulares e criticadas por grupos políticos e científicos, como o projeto de lei que tornou obrigatória a vacinação. (Fundação Oswaldo Cruz, 2003, p. 9-11, 22, 24-25, 56; Fávero, 1981, p. 219, 228, 231-234; Lacaz, 1963, p. 30)

Houve forte reação contrária à obrigatoriedade, tanto por parte de políticos como de jornalistas, cartunistas, cientistas e população em geral. Entre os cientistas encontrava-se a Diretoria do Apostolado Positivista. (Fávero, 1981, p. 233) Se no início do século XX grupos contrários à vacinação falavam em produção de vacina a partir de ratos com peste, do risco de transmissão de sífilis ou tuberculose e até de morte, atualmente ouve-se falar de produção com fetos abortados, risco de mudança do código genético, surgimento de doenças como autismo, presença de chips implantados para controle populacional e possibilidade de centenas de milhares de mortes associadas à vacina. (Dias, 2020)

Poucos dias após a aprovação da obrigatoriedade pelo Congresso Nacional, foi criada uma Liga Contra a Vacina Obrigatória que, no entanto, não chegou a atuar. Adversários de Oswaldo Cruz chegaram a acusar os profissionais de saúde de desrespeitarem as mulheres ao vaciná-las em região muito alta da coxa. (Fundação Oswaldo Cruz, 2003, p. 58; Fávero, 1981, p. 233) No livro "Oswaldo Cruz: o médico do Brasil”, publicado em 2003 como produto do Projeto Memória e fruto da parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz, Fundação Odebrecht e Fundação Banco do Brasil, é possível encontrar vasta produção de charges, desenhos de humor, versos sarcáticos publicados em revistas e jornais de grande circulação na época. (Fundação Oswaldo Cruz, 2003) Nessa mesma obra está reproduzido trecho do discurso de Rui Barbosa no Senado: 


Não tem nome na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania, a que ele se aventura, expondo-se, voluntariamente, obstinadamente, a me envenenar, com a introdução, no meu sangue, de um vírus, em cuja influência existem os mais fundados receios de que seja um condutor de moléstia, ou da morte. (Fundação Oswaldo Cruz, 2003)


A insatisfação popular adquiriu tamanha dimensão que a 10 de novembro de 1904 as ruas do centro da cidade foram tomadas por manifestantes que depredaram postes, arandelas, bondes, construíram barricadas e enfrentaram a polícia. A Revolta da Vacina durou cerca uma semana e, nesse período, houve tentativa de deposição do governo de Rodrigues Alves por aproximadamente 200 cadetes da Escola Militar que, “bem armados e municiados, sob as ordens de um general, se insurgiram e marcharam contra as forças legais”. Sugeriu-se a saída de Oswaldo Cruz como forma de encerrar a revolta. Ele chegou a apresentar sua demissão, mas foi recusada pelo presidente. Tropas de outros estados acorreram para conter o movimento que foi finalmente controlado. “A obrigatoriedade da vacina, contudo, foi revogada”. (Fávero, 1981, p. 233; Fundação Oswaldo Cruz, 2003, p. 62) 

Sem que se entre no mérito da pertinência da decisão legal a favor da obrigatoriedade da vacinação antivariólica, aprovada a 31 de outubro de 1904 e revogada pouco tempo depois, pode-se concluir pela sua ineficácia no sentido de alcançar vacinação em massa. Muito pelo contrário, o que se viu foi ampla resistência que resultou grave surto de varíola em 1908, com mais de 9.000 vítimas. (Fávero, 1981, p. 233; Fundação Oswaldo Cruz, 2003, p. 62)

Olavo Bilac, em crônica publicada no Correio Paulistano a 10 de abril de 1908, chama a atenção para a mudança de posicionamento da população carioca quatro anos depois da Revolta da Vacina:


Por causa da vacina de Jenner, já esta boa cidade de Mem de Sá ficou às escuras e ensangüentada, durante quase uma semana; houve uma tentativa de deposição do presidente da República; revoltou-se a Escola Militar; morreu um general; e a Companhia de Gás teve, em lampiões quebrados, um prejuízo superior a quatrocentos contos de réis…

Vede agora o outro lado do quadro. A vacinação é moda. Vacinam-se duzentas pessoas por dia. O Instituto Vacínico e os postos sanitários municipais esgotam quotidianamente provisões consideráveis de linfa.[…]

Ora, viva Deus!, nesta época em que há a epidemia de smartismo, não há o perigo de uma séria epidemia de varíola, uma vez que toda a gente considera smart a vacinação. É preciso render graças ao chic! O chic pôde fazer aquilo que em vão foi tentado pelo bom senso e pelos conselhos dos médicos. Também, para alguma cousa boa havia de servir esta desvairada preocupação de elegância  que avassalou o Rio de Janeiro![…]

Mas ninguém se pode opor a essas correntes de opinião, boas ou más, que se formam inconscientemente no seio do povo, e não se sabe como vai de minuto em minuto aumentando a sua força e avassalando cidades e países. Há menos de quatro anos, a vacina de Jenner era o pior dos venenos e a vacinação era o maior dos crimes; disse-se da linfa preventiva o que o Mafona nunca disse do toucinho: transmitia a tuberculose, a sífilis, a lepra; era preparada com sangue de ratos pestosos; era uma sânie infecta que apodrecia o organismo do inoculado; e quem se atrevia a contrariar essa opinião, arriscava-se a ser linchado em praça pública. Hoje, quem não se vacina, é imbecil e não é homem chic; e quem duvida da glória de Jenner é olhado como um pobre diabo, incapaz de compreender o que é a glória.

É assim o nosso povo, e são assim todos os povos. Qualquer povo vai para o bem, tão facilmente como para o mal. É preciso saber levá-lo. Mas quem há que se possa gabar de saber levá-lo? Esse ofício de "condutor dos povos" está ficando cada vez mais difícil. Quase sempre, os homens, que se vangloriam de conduzir multidões, são realmente conduzidos por elas!… (Olavo Bilac, 1908, p. 152-153)


Considerações finais 

A vacina contra a varíola humana foi a primeira a ser adotada sistematicamente e, desde sua introdução em 1798, desencadeou uma série de manifestações contrárias à sua utilização, tanto no Brasil como no exterior. Mesmo na Inglaterra, onde foi desenvolvida inicialmente, a vacina não foi aceita de imediato, nem mesmo pela comunidade científica. Trata-se de reação possível diante do novo, do desconhecido, e que deixa espaço para suposições ou conjeturas sem embasamento científico, algumas das quais atualmente alimentadas por fake news. É importante considerar que o comportamento das pessoas não é determinado somente por evidências científicas, mas também por  suas crenças, medos, cultura e experiências anteriores, principalmente quando se pretende realizar uma grande intervenção como a vacinação em massa.

No Brasil, desde os primeiros anos do século XVIII, as autoridades se valeram de ameaças de multas, prisões e leis com o intuito de obrigar a população a se deixar vacinar. Em 1846 e em 1904, um decreto imperial e uma lei da República, respectivamente, determinaram a obrigatoriedade da vacinação. Contudo, nenhuma das duas normas legais se mostrou eficaz para prevenir novos surtos epidêmicos de varíola. A adesão maciça da população ocorreu apenas em 1908, não por causa de determinação legal, mas porque passou a fazer sentido para as pessoas. Estas buscavam vacinar-se porque constavam que aqueles que haviam se vacinado nos anos anteriores não sucumbiam ao novo surto que atingia o Rio de Janeiro. Antes disso, apenas conselhos médicos e imposições legais acompanhadas de ameaças de perdas de direitos ou punições não resolveram a questão. Tal constatação deve ser levada em conta neste momento de planejamento para vacinação em massa contra uma doença nova.

De volta à decisão do STF, é possível que nem fosse necessária caso as autoridades decidissem vacinar primeiro os 75% da população que já manifestaram desejo de fazê-lo, pois há evidências históricas que os 25% restantes poderão ir mudando de opinião com o passar do tempo. (Dias, 2020) Mais eficaz seria, muito provavelmente, obrigar o Estado a manter a população constantemente bem informada sobre os resultados dos testes realizados com as vacinas e, posteriormente, de seus efeitos quando as campanhas de vacinação tiverem início. 



Referências

STF. Supremo Tribunal Federal [site]. Imprensa. Plenário decide que vacinação compulsória contra Covid-19 é constitucional. 17 dez 2020, 21h17. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1 .  Acesso em: 24 dez 2020.


Fundação Oswaldo Cruz. Oswaldo Cruz: o médico do Brasil. São Paulo: Fundação Odebrecht; Brasília, DF: Fundação Banco do Brasil, 2003, 135 p. 


Gebara, A. J. Varíola. In: Prado, F. C., Ramos, J. A., Valle, J. R. Atualização Terapêutica. Rio de Janeiro - São Paulo - Belo Horizonte: Livraria Luso-Espanhola e Brasileira, Ltda, 1957, 997 p.


Santos Filho, L. C. História Geral da Medicina Brasileira. São Paulo: Hucitec, Ed. Da Universidade de São Paulo, v. 1, 1977, 436 p.


Sigaud J. F. X. Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste império. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009. 424 p.


Saint-Hilaire, A. F. C. P. Viagem à província de São Paulo e Resumo das viagens ao Brasil, Província Cisplatina e Missões do Paraguai. Tradução: Rubens Borba de Moraes. São Paulo: Livraria Martins, 1940. 375 p.


Rezende JM. À sombra do plátano - crônicas de história da medicina. São Paulo: Editora Unifesp, 2009. 408 p.


Fávero, F. Oswaldo Cruz. In: Homens de São Paulo: reimpressão parcial da 1. ed. (1954). São Paulo: Martins e Ed. Da Universidade de São Paulo, 1981, p. 217-246.


Lacaz, C. S. Vultos da Medicina Brasileira. São Paulo, 1963. 100 p.


Dias, L. C. Desmentindo as fake news sobre vacinas. Unicamp [site]. 13 out 2020. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2020/10/13/desmentindo-fake-news-sobre-vacinas. Acesso em: 25 dez 2020.


Olavo Bilac. Diário do Rio. Correio Paulistano, 10 de abril de 1908. In: Dimas A. Bilac, o Jornalista: Crônicas: Volume 2. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, Editora da Unicamp, 2006. 576 p.


sábado, 31 de outubro de 2020

Notas sobre Neta de escravos com café quente

  A leitura do livro “Vitalina Cherubim - Neta de escravos em conversas com café quente” ocorreu em dezembro de 2019, mês de seu centenário. O lançamento do livro na Livraria Leitura, em Campinas, aconteceu um pouco antes, em 23 de novembro. Peguei o livro na prateleira e me dirigi ao caixa. Uma vez adquirido meu exemplar, entrei na fila de dedicatórias. Tanto Vitalina, como a jornalista e escritora Maria Alice da Cruz, atraíram uma multidão de leitores que esperaram pacientemente na fila por cerca de uma hora. Conversas animadas entre pessoas que se conheciam na fila e se perguntavam se eram conhecidos de Vitalina ou Maria Alice dividiam o tempo com o folhear dos exemplares. Meu olhar se deteve, num primeiro momento, na capa. Associei o fundo, com diferentes tons de marrom claro, indo ao rosa ou vermelho, à cor da terra das plantações de café no interior paulista. Em destaque, uma sorridente senhora de cabelos branquinhos e finos, usando brinco e vestido branco com bolinhas azuis. Segura uma bonita xícara de porcelana branca enfeitada com desenhos dourados. Uma aliança no quarto dedo da mão esquerda. O terceiro dedo da mão direita aparenta aumento de volume da articulação interfalangeana proximal (nódulo de Bouchard ?) e está montado a cavalo no quarto dedo, e ambos encontram-se levemente desviados no sentido ulnar, apoiando a asa da xícara, o que me fez suspeitar de artrose ou artrite reumatóide. Aos poucos, a fila avançou, até que fui recebido por escritora e homenageada, ambas aparentemente felizes, mesmo depois de algumas horas sentadas e ocupadas em criar dedicatórias singulares. Uma foto com cada futuro leitor da obra.

Um texto agradável, que percorri com gosto. Convivi Intensamente com Vitalina e sua família durante três dias.
Vitalina me mostrou que a crueldade da escravidão está muito próxima. Ouvia seus avós contarem histórias com sotaque estrangeiro, com erros de português, comuns àqueles que trocam seus países de nascimento pelas terras distantes. No caso, a troca não havia sido voluntária, mas imposta e extremamente sofrida. Viajaram, sem assim o desejar, em navio negreiro. Fome, frio, medo, revolta durante o longo trajeto. O casamento dos avós foi fruto dessa violência contra os negros. A sinhá precisava de uma ama de leite para amamentar seu filho, e escolheu uma jovem negra para cumprir essa tarefa. Fê-la, então, casar-se com um jovem negro. Os filhos que nasciam tinham que se contentar com o anguzinho de fubá, pois o leite materno ia todo para o ventre do filho da sinhá. Essa história triste, Vitalina ouviu da própria avó, com seu jeito engraçado de falar o português, já que sua língua natal deveria ser esquecida. A neta desse casal que cruzou o Atlântico num navio negreiro estava ali, diante de mim, colocando seu nome nos exemplares que se sucediam sobre a mesa na tarde de autógrafos.
Seu pai Benedito Alexandre veio ao mundo em 1871, na vigência da Lei do Ventre Livre. O cinismo da pretensa liberdade está presente no relato de Maria Alice, neta de Vitalina: “Nas fazendas tinha os imigrantes, que também sofreram, mas pegavam caminhos mais fáceis e os negros libertos ficavam com pedaços inférteis e não produziam alimento. Isso mostra por que demoramos mais em nossas conquistas”. As terras de pior qualidade para a agricultura exigiram muito mais esforço, perseverança e resiliência. Benedito e sua esposa Maria Luiza trocaram de fazenda algumas vezes, visando o sustento dos dez filhos. As caminhadas duravam muitas horas, entre uma propriedade e outra. Passaram necessidade. Muitas vezes. Uma realidade tão próxima, pois está a apenas uma geração da senhora que distribuía autógrafos na Livraria Leitura do Shopping Dom Pedro, em Campinas, mas também tão distante da realidade da multidão que aguardava na fila enquanto escutava um talentoso homem negro tocar violão e cantar MPB, e de todos aqueles que transitavam pelo imenso centro comercial.
As pessoas que guardam na memória a infância no campo, a jornada que começava às 4:30, o almoço das 8:00 e o café gelado das 12:00, ficam divididas entre sentimentos de nostalgia e de sofrimento, entre lembranças de momentos alegres em família e sofrimento por causa da fome. A mãe de Vitalina era capaz de se satisfazer com apenas uma pedra de sal para doar tudo aos filhos famintos. Tão distante das praças de alimentação dos shoppings, quase sempre abarrotadas de pessoas gulosas e nem um pouco famintas, que desperdiçam excessos de comida industrializada.
A irmã Antônia foi vítima do árduo trabalho no campo. Foi vítima também da Psiquiatria da década de 1930. Carpindo no arrozal, dia após dia, de repente, pôs-se a chorar e esbravejar. Era, com certeza, demais para ela. O pai, desesperado, sem saber como lidar com os sintomas do sofrimento da filha, buscou ajuda em vários lugares. Os médicos, achando que sabiam lidar com o sofrimento da filha dele, a internaram durante mais de 40 anos. Proibiram-a de gritar e chorar. Silenciaram seu sofrimento. A reforma psiquiátrica não chegaria a tempo de resgatá-la.
A irmã Francisca também sumiu, mas em razão da fé. Nunca mais se soube de seu paradeiro.
Vitalina e sua irmã Alice, já na década de 1950, ousaram deixar o campo e enfrentar a cidade. Campinas crescia rapidamente e havia emprego para jovens negras. Quase sempre como domésticas. Foi assim que conseguiram seguir adiante, criar seus próprios filhos, construir suas casas e montar seus lares.
Grande companheira de Vitalina, sobre uma mesa, durante várias horas por dia. Não um computador, mas uma máquina de costura de 20 "merréis". Dela, nasceram roupas para familiares próximos. Calças boca de sino davam mais trabalho.
Tanta história nas conversas com café quente. O mesmo café paulista chamado de ouro verde. O mesmo que enriqueceu a elite paulista graças à escravos negros como seus avós. Mas que agora significa boa prosa, com amigos.
Como terá sido para Maria Alice da Cruz resgatar essa história que pode ser muito parecida com a de sua avó? Que pensamentos emergiram? Que sentimentos? A história da família de Vitalina deve ser um pouco a da família de Maria Alice. E é um pouco a história do nosso país. A verdadeira. Não aquela dos livros de história.
Terminada a leitura, restou a vontade de saber mais. De saber o que Vitalina pensa das cotas raciais, das falas do ex-presidente da Fundação Palmares, das atividades do 20 de novembro. E tantas outras perguntas que pedem uma boa prosa.


terça-feira, 5 de maio de 2020

Cantinela do comprador de roupa velha

"Ouvi outro dia a cantilena do comprador de roupa velha, quando amanhecia. Soube que se tratava do filho do judeu de minha infância, imitando o sotaque e a cantilena do pai. Sons que desaparecem, que voltam, formam o ambiente acústico dos bairros." Assim que li esta passagem do livro "Memória e Sociedade: lembranças de velhos" (2009, p.444), de Ecléa Bosi, lembrei do que escreveu Ramazzini a respeito das profissões exercidas pelos judeus no século XVII. Eram poucas as toleradas ou permitidas. Dentre elas, a reforma e costura de roupas velhas. De acordo com o pai da Medicina do Trabalho, os judeus "Enganam o povo incauto vendendo-lhe objetos usados, porém com defeitos habilmente consertados, e ganham seu sustento retocando objetos”. (Vide "Doenças dos Judeus”, postado em agosto de 2017). No fundo, a cantinela do comprador de roupa velha avisava que a tradição, a história do povo judeu fazia parte da São Paulo da primeira metade do século XX.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Cavanhaque do bode

Mas tratei e consegui curar com simpatia. Só que eles não podem saber. Esse remédio só cura dos sete aos quinze anos. Quantas crianças eu curei! A amostra está aí dentro de casa. Me ensinaram a tirar a barba do cavanhaque do bode; eu torrava na frigideira e socava num paninho bem socadinha e coava numa peneirinha bem fininha que eu tinha e dava pra eles misturado no chá, no leite. Mas precisava fazer três meses na primeira sexta-feira do minguante. Fiz isso bem direitinho e guardava no vidro, pois dizia... "sempre vou achar bode?". Pra eles arrancarem o fio da barba já xingavam tanto a gente!
(Bosi, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. D. Risoleta. p. 393-394)

domingo, 26 de abril de 2020

Piranha

As manhãs de outono costumam ser bonitas, mesmo durante a triste pandemia. Céu muito azul, sem nuvens e temperatura agradável. Estávamos na ocupação, onde todas as casas são de madeira e as ruas estreitas e tortuosas. O sr. Valdimiro nos aguardava sentado numa cadeira, olhando para a sua casa. Outras duas cadeiras estavam destinadas a mim e a aluna do 4˚ ano de medicina. “Consultório" ao ar livre, sombreado e silencioso. Condições ideias para ouvir sua história de vida e de suas doenças. 
Aquele homem pálido, emagrecido, com pouca massa muscular perdera completamente a visão há cerca de 5 meses. Custei a acreditar no que li na carteira de identidade: aquele “idoso" era cinco anos mais novo que eu! 
A catarata atingira os dois olhos. A perda de transparência do cristalino deixava claro a falência do sistema de saúde no controle do diabetes e no tratamento da doença ocular comum entre pessoas portadoras dessa doença e/ou tabagistas, como o sr. Valdimiro. Dedicava-se com afinco ao próprio tratamento, proibindo-se a si mesmo a ingesta de açucar e tomando os três tipos de remédios receitados pelos doutores. No entanto, não estava nada bem. O apetite estava péssimo e o peso diminuía à medida que os músculos murchavam. O aparelho digestivo não colaborava: ora vômito ora diarreia ora a barriga distendida. Com muito esforço fazia meia refeição ao dia. A glicemia capilar, aferida pelo aparelho que guarda em casa e que lê a gota de sangue que obtém furando o dedo diariamente, insiste em permanecer elevada.
Um pouco de paciência para ler com ele as bulas dos remédios e tivemos a certeza que a diminuição do apetite, a perda de peso e os sintomas gastrintestinais poderiam ser reações adversas aos remédios. Mais uma vítima da iatrogenia.
A cirurgia ocular já havia sido suspensa uma vez, pois o oftalmologista não opera se o diabetes estiver fora de controle. Como isto não aconteceu a visão sumiu. E com ela a alegria de viver. “Doutor, não dá pra internar uns dois ou três dias, compensar o diabetes e operar?”. 
A cegueira fôra atribuída ao diabetes e ao tabagismo. Mas aparentemente era fruto também da desigualdade social, iniquidade, pobreza, protocolos biomédicos e falha do cuidado em rede.
Enquanto eu escrevia o caso, já em casa, para posteriormente compartilhar com a equipe de saúde, assistia a um documentário na televisão. Em um aquário norteamericano, uma equipe de veterinários dedicava-se a preparar um pinguim chamado Charlie para a cirurgia de catarata. Impossível não se questionar sobre os valores presentes na nossa sociedade ocidental. Nestas primeiras décadas do século XXI, aquele pinguim tinha mais chance de chegar à cirurgia de catarata do que aquele simpático, educado e resignado cidadão pernambucano. Um misto de tristeza, revolta e inconformismo invadiu-me. No entanto, foi a cirurgia de uma piranha residente no mesmo aquário que me impeliu a escrever esta crônica.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Tuberculose tostão

Eu não apanhei a gripe de18. Mamãe me mandou para São José dos Campos. Eu fugi da gripe. Fiquei sozinho num hospital de tuberculosos, o Instituto São Geraldo, que era do Jaime Ferreira, casado com minha prima. Até a empregada caiu de gripe; aprendi a fazer de tudo, até cozinhar.
A tuberculose não pega, tanto que comecei a namorar com uma tuberculosa, dava cada beijo nela e não peguei nada. Ela tinha sido casada com Fosco Candini, que era um cantor de operetas. E uma moça que sabia que ia morrer, me disse: “Seu Abelzinho, eu sou tuberculosa, ninguém gosta de mim, mas eu gostaria de que alguém me desse um beijo”. “Então, venha cá.” E lhe dei um beijo de desentupir pia. Eu tinha quinze anos nesse tempo.
O Huygnens, que era um dos hóspedes, descobriu-se que não era tuberculoso, ele estava lá era fugido; tinha dado um desfalque no Banco Noroeste.
A comida que eu comia lá era a mesma dos tuberculosos do sanatório, e nunca pegou. Os parentes proibiam que se desse dinheiro para as moças tuberculosas, porque elas compravam bebida com esse dinheiro. Um dia, no quarto de uma moça, debaixo da cama, achei uma garrafa de álcool. Ela, com o pretexto de tomar banho de álcool (os tuberculosos naquele tempo não tomavam banho comum, de água), guardava debaixo da cama aquele garrafão e bebia o álcool! De tão desesperadas, elas bebiam mesmo. E acabavam morrendo. E lembro agora uma história de família.
De Campos do Jordão eu tenho uma lembrança nítida. Quando eu tinha oito anos, fui passar uns tempos lá com minha prima, a Nadir Galvão Bueno. Foi então que chegou a Campos um jovem alto, grande, cabelos bastos negros, o homem mais bonito que eu conheci, uma dentadura perfeita, uma beleza sem defeito. Mas subiu de maca, veio para morrer. Era filho do armador Mateus Ferreira, do Rio de Janeiro. Subiu para morrer. No fim de uma semana, quem tratava dele já não era a enfermeira, era essa minha prima. E ela acabou casando com ele. Todo mundo achou que era loucura casar com um homem que estava para morrer. Pois olhe, o sr. Jaime Ferreira não morreu, ficou dois ou três meses em Campos do Jordão, desceram ele e a mulher pra São José dos Campos e montaram lá o Instituto São Geraldo, a primeira pensão de tuberculosos. São Geraldo é o protetor dos tuberculosos. Tiveram um filho que até os cinco anos era uma beleza de menino, mas aos seis anos teve um ataque epiléptico. Quando ele começava a gaguejar, pê… pê… pá… pá… pá…, a gente mandava ele correr pra casa porque era certo que vinha o ataque epiléptico. E não há remédio para este mal. Só esperar aquele estrebucho e deixa passar, depois ele se sentia feliz e descansado.
O tuberculoso pode fazer tudo, menos vir para São Paulo. Esse meu parente era tuberculoso dos dois pulmões, fez uma toracoplastia, cortou as costas e pôs duas bolinhas de pingue-pongue no lugar das cavernas. Mais tarde veio para São Paulo magro, torto e morreu. Deu um tiro no ouvido, não aguentava mais viver.
Os tuberculosos tinham características interessantes. Uma delas era usar uma escarradeira pequenina de bolso, azulzinha, um negócio horroroso. Eles faziam hé… hé… hé… cuspiam lá dentro e depois guardavam no bolso. Mas depois descobriu-se que não era necessário usar as escarradeiras fora do sanatório, só dentro, porque ao ar livre os raios ultravioleta em quinze minutos eliminam o bacilo, isso por causa da situação de São José dos Campos. Não é a altura, pouco mais que a de São Paulo, é a situação da cidade. São Paulo tem 670 e São José 674 metros de altura, mas tem raios ultravioleta. Por isso deixou de existir lá a peste branca.
A tuberculose é curável: é só comer bastante, fazer repouso e tomar cuidado com o sol. A característica tuberculoso, naquele tempo, era andar sempre de guarda-chuva, não por causa da chuva, mas para não tomar sol. O sol pode fazer aumentar a infecção e aí aparece a "vermelhinha". Eles brincavam um com os outros: "Eu estou ficando rico, tinha só um tostão e já estou agora com duzentão. Mas ainda chego lá, no quatrocentão. ‘E a vermelhinha?’ Bom, a vermelhinha eu já estou com ela”. O tostão, o duzentão, eram o tamanho das cavernas que eles tinham no pulmão. E a vermelhinha era a febre acompanhada de sangue quando eles cuspiam.
No sanatório, quando um doente passava mal acendia uma luzinha vermelha. Meu primo pedia: “Você não quer atender para mim”. Deixava toda a aparelhagem ali: algodão, gelo e emetina Bruneau. Tocava e lá ia eu atender a moça. Quanta moça bonita! "Moça, o que houve?” Era aquela sangueira no chão. Era uma hemoptise violenta. Então eu sapecava a emetina Bruneau, gelo na boca e ficava esperando. Muitas se salvaram. Outras, no dia seguinte, morreram. 


(Bosi, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Sr. Abel. p. 190-192)

Vidraria e tuberculose

"O Matarazzo começou vendendo banha, todos sabem. Depois latas de banha. E depois fez as garrafas, a Vidraria Santa Marina: quantos meninos ficaram tuberculosos soprando a areia para virar vidro!" (Bosi, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Sr. Abel. p. 187)

Esse pequeno trecho das lembranças do Sr. Abel encerra em si muita informação e pode ser observado através de diferentes lentes. Por exemplo, a lente da história da migração italiana para São Paulo, ou da história da gastronomia e uso de banha, ou ainda do trabalho infantil. Mas escolhi a lente da Saúde do Trabalhador e, mais especificamente, da silicose muitas vezes confundida com tuberculose. 
Em 2008, o médico do trabalho Bernardo Bedrikow escreveu "Lembrança do Jaçanã”. "Nessa crônica, relembra a instalação de enfermaria própria para casos de silicose no Hospital São Luiz Gonzaga, no bairro do Jaçanã, em São Paulo, na década de 1940. Esse hospital destinava-se principalmente ao cuidado de enfermos com tuberculose, mas o surgimento de número expressivo de pessoas acometidas pela pneumoconiose, muitas vezes confundida com tuberculose ou associada a ela, e a presença de várias empresas do ramo de cerâmicas, vidrarias e produção de sabões abrasivos, entre outras (produtoras de poeira no local de trabalho) levaram à criação da referida enfermaria. (Rev Bras Med Trab.2015;13(1):43-57) 



sexta-feira, 10 de abril de 2020

Carta de idoso

Campinas, 10 de abril de 2020.

Sr. Jair Messias Bolsonaro
Presidente do Brasil

Prezado Sr. Jair,
Sou idosa e quero continuar vivendo. Nasci em Lucca, cidade italiana da região da Toscana, no ano de 1926. Provavelmente, o senhor, que é rico, a conhece. Eu, nunca mais voltei à Italia e guardo apenas vaga lembrança da Chiesa di San Michele in Foro. Foi o último lugar que estivemos antes de emigrare in Brasile. Meu pai fez questão de reunir a família para rezar diante da Madonna con Bambino.  A travessia do Atlântico foi sofrida. Não tivemos sorte, pois fomos atingidos por tempestades violentas e tivemos medo de que o vapor afundasse. Os passageiros passavam mal e muitos vomitavam. Como dormíamos em beliches muito próximos uns dos outros, os roncos e vômitos não respeitavam fronteiras e, amiúde, alcançavam os colchões vizinhos. Quando a maré sossegava, as mulheres corriam lavar a terceira classe. A viagem demorou cerca de um mês, com escalas em Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Finalmente chegamos em Santos. Havia ainda o trem, também apinhado de gente. Na Hospedaria, em São Paulo, tomamos banho, almoçamos e nossos pertences foram desinfectados. Nessa ocasião, São Paulo contava com pouco mais de um milhão de habitantes. Mas não nos demoramos por lá, pois meu pai conseguiu trabalho numa fazenda na região de Campinas, bem menor, com pouco menos de cento e cinquenta mil almas. O primeiro lugar que meu pai nos levou foi à Chiesa Nostra Signora della Concezione. Fomos agradecer e rezar. Estávamos magros, mas unidos e cheios de esperança. Nunca deixei de agradecer, mas, anos depois, passei a frequentar a Basílica do Carmo, pois o som do Organo a canne me deixa mais perto de Deus. Agora, mais perto do fim da vida, fico muito emocionada quando a missa é acompanhada pela música do órgão Tamburini e as vozes do coral. Não consigo impedir que lágrimas escorram. Mas são de emoção e não de tristeza. Escorrem porque sinto que Deus está na música que penetra minha alma.
Escolhi ser professora. O brilho nos olhos das crianças que ouviam as histórias que eu lia e que descobriam a beleza da literatura infantil, das poesias, dos mistérios da natureza, desvendados pela ciência, era meu maior pagamento. Só quem teve o privilégio de ser educador sabe do que estou falando. Acompanhei os jovens trocarem as calças curtas por calças longas, se apaixonarem e sofrerem por amor. Eu estava lá para ouvi-los. Alguns chegavam magros, com fome. Olhos tristes. Com certeza a situação estava difícil em casa. Eu me esforçava para não deixar as lágrimas sairem; estas, sim, de tristeza. Só vazavam em casa, quando eu me fechava no quarto à noite e rememorava o dia. Era um misto de tristeza e revolta com a desigualdade deste lindo país que me acolheu quando eu também aqui cheguei criança. Às vezes, eu comprava pão para elas, escondido do diretor da escola e de meu marido.
Muitas dessas crianças têm hoje, senhor presidente, a sua idade. Algumas ficaram ricas como o senhor e mandam no país. As mesmas crianças de ontem, que fizeram lágrimas escorrer no meu rosto, tanto de emoção como de tristeza, parecem não se importar com os velhos. Deixei de assistir televisão, tamanha minha tristeza diante das falas relativas à epidemia. “A doença não é tão grave! A maioria das pessoas que vai morrer são idosos!”
Peço desculpas, senhor presidente, mas não posso continuar esta carta. Minhas mãos tremem. Mas gostaria de fazer-lhe um pedido final. Nos dê a chance de viver. Não quero morrer agora, pois ainda posso ensinar muito a vocês. 
Rogo ao médico que cuidar de mim durante minha passagem que,  se eu morrer infectada pelo Coronavírus, sem acesso a terapia intensiva e respiradores, coloque no meu atestado de óbito que a causa mortis foi desigualdade social e desvalorização do idoso. Por favor, não reduza minha morte à COVID-19.  

Respeitosamente,


Maria di Lucca

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Difruço

- Ô Bésa! Cê tá aí? - disse Gustinha, olhando por cima do muro, procurando pela vizinha Isabel.
- Gustinha, tô aqui. - respondeu a vizinha. 
- Por que o povo tá tudo mascrado? Ocê viu? Tem umas cabôcas que cobre a boca, nariz e até os cabelo. Será que tão trocando de religião, igual as muié árabe?
- Gustinha! Você não está sabendo? É a gripe?
- Iapôe? É difruço, é? E carece essas máscra? Mia fia ligó e disse que escutchó o presidente falá que é só uma gripezinha.
- Ele fala isso porque não morreu ninguém da família dele. Olha o que está acontecendo na Itália e na Espanha. Muitas pessoas morrendo. Acho mais seguro dar ouvido aos médicos.
- Arre-égua! Esse miserave qué matá os pobre? Eu vou é segui os conseio dos dotô. Meu falecido Sinval passó dessa pra mió pruquê nunca foi nas consurta com os dotô. Aquele caba abestado estribuchó com dor no peitcho. Eu vou correndo na loja comprá uma máscra. 
- É melhor você não sair de casa. A gripe é mais grave nos idosos e passa fácil de uma pessoa pra outra. Também não pode cumprimentar com a mão. Tão dizendo pra ficar em casa.
- E é? É mió sossegá em casa?
- Claro. Você que é idosa, principalmente. Fique em casa. Eu compro as coisas pra você. É só mandar a lista por cima do muro.
- Obrigado, Bésa. Ocê é um anjo pra mim. Eu tô é ficando avechada e barriada, com muito medo.
- Gustinha, liga pros seus filhos e fala pra eles ficarem em casa também.
- Eita lasquera, essa peste da moléstia me fez matutá do meu primo Severino. Aquele picolé de onça dos cabelo pichainho e zarôio. Estudô medicina lá na facurdade de Salvador, a mais antiga do Brasil, como ele gostava de dizer. Ele se foi ano passado com 90 anos. Vivia frébendo. Acho que era maléita. Ele receitava uns tratamento pro difruço que aprendeu num livro francês, muito bão.
- O que ele indicava para a gripe?
- Sei não. Mas tenho o livro guardado lá dentro. Vou pegá pra ocê lê pra nóis.
- Tá bom. Eu espero. 
- É esse aqui. Bonito, né? Lê pra nóis.
- Vou ler. Aqui diz que o doente com gripe precisa ficar isolado e não pode receber visitas. As pessoas que convivem com o doente devem fazer várias vezes ao dia a desinfecção rinofaríngea, isto é, instilar óleo nas narinas, e lavagem da garganta e boca com ácido salicílico, borato de sódio, fenosalil, Licor de Labarraca. Gargarejo é bom. Nas famílias com vários doentes, separar os casos simples dos casos complicados.
- Oxente! Compricado mermo. O que mais?
- Ferver água com folha de eucalipto no quarto do doente. Fricções estimulantes com alcoolato de lavanda ou água de Colônia.
- Eita! Cheirinho bom vai ficá no quarto. Vou fazer isso no meu.
- Ah, mas isso que vou ler agora você não pode fazer, tá! Injeções tônicas subcutâneas à base de arsênico e estricnina. 
- Bésa, eu tô querendo uma injeção pro meu espinhaço que me aperrea todo dia. Será que essas que ocê leu tira pra sempre minha dor?
 


Campinas, 6 de abril de 2020.

domingo, 5 de abril de 2020

A epidemia de perda de memória

A perda de memória tornou-se problema de saúde pública no século XXI. Há mais de 50 anos, Gabriel García Márquez dedicou páginas a uma epidemia de insônia e perda de memória, em Cem Anos de Solidão1:
"No domingo, de fato, Rebeca chegou. Ela não tinha mais de onze anos de idade". (p.59)
"Uma noite, por volta da época em que Rebecca foi curada do vício de comer terra e foi levada a dormir no quarto das outras crianças, a índia que dormia com elas acordou por acaso e ouviu um estranho barulho intermitente no canto. Ela sentou-se em alarme, acreditando que um animal tinha entrado na sala, e depois viu Rebecca na cadeira de balanço, chupando o polegar e os olhos dela iluminados como os de um gato no escuro. Surpresos de terror, perturbados pela inevitabilidade do seu destino, Visitación reconheceu nesses olhos os sintomas da doença, cuja ameaça a tinha forçado a ela e ao seu irmão a banirem-se para sempre de um reino milenar em que eram príncipes. Era a praga da insônia. ...] Mas a índia explicou-lhes que o mais assustador da doença da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço, mas a sua inexorável evolução para uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Ela quis dizer que quando o doente se habituava ao seu estado de vigília, as memórias da infância começavam a ser apagadas da sua memória, depois o nome e a noção das coisas e, finalmente, a identidade das pessoas e até mesmo a consciência do seu próprio ser, até que se afundava numa espécie de idiotice sem passado"(p.63)
"Quando José Arcadio Buendía percebeu que a praga tinha invadido a cidade, reuniu os chefes de família para lhes explicar o que sabia sobre a doença da insônia e foram acordadas medidas para evitar que o flagelo se propagasse a outras cidades do pântano. Assim, das cabras foram retirados os sinos que os árabes trocavam por araras, e foram colocadas à entrada da aldeia, à disposição daqueles que ignoravam os conselhos e os apelos das sentinelas e insistiam em visitar a população. Todos os estranhos que nessa altura andavam pelas ruas de Macondo tinham de tocar o seu pequeno sino para que os doentes soubessem que eram saudáveis. Não lhes foi permitido comer ou beber nada durante a sua estadia, pois não havia dúvida de que a doença só era transmitida pela boca, e todas as coisas para comer e beber estavam contaminadas com insônia. Desta forma, a peste foi mantida confinada ao perímetro da população. Tão eficaz foi a quarentena que chegou o dia em que a situação de emergência foi tomada como natural, e a vida foi organizada de modo a que o trabalho recuperasse o seu ritmo e ninguém mais tivesse de se preocupar com o hábito inútil de dormir.
Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que os deveria defender durante vários meses das evasões da memória. Ele descobriu-a por acaso. Perito em insônia, tendo sido um dos primeiros, tinha aprendido a arte da prataria até à perfeição. Um dia estava à procura da pequena bigorna que usava para laminar os metais, e não se lembrava do seu nome. O seu pai disse-lhe: <<tas>>. Aureliano escreveu o nome num papel que colou na base da pequena bigorna: tas. Dessa forma, não o esqueceria no futuro. Não lhe ocorreu que esta fosse a primeira manifestação de esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas alguns dias depois descobriu que tinha dificuldade em se lembrar de quase tudo no laboratório. Por isso, marcou-os com o respectivo nome, para que lhe bastasse ler a inscrição para os identificar. Quando o seu pai comunicou o seu alarme por ter esquecido até os fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano explicou-lhe o seu método e José Arcadio Buendía pô-lo em prática em toda a casa e, mais tarde, impô-lo a toda a gente. Com um hissopo tintado ele marcou cada coisa com um nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, frigideira. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabra, porco, galinha, mandioca, malanga, guinéu. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que um dia poderia chegar em que as coisas seriam reconhecidas pelas suas inscrições, mas a sua utilidade não seria lembrada. Por isso, foi mais explícito. O sinal pendurado no pescoço da vaca foi um exemplo da forma como os habitantes de Macondo estavam preparados para lutar contra o esquecimento: esta é a vaca, deve ser ordenhada todas as manhãs para produzir leite e o leite deve ser fervido para misturar com o café e fazer café com leite" (p.66-67) 
Nesse trecho de sua obra, García Marquez nos apresenta de forma fantasiosa dois temas muito reais e de suma importância para a sociedade deste primeiro quarto do século XXI: o aumento de pessoas com comprometimento da memória e o enfrentamento de epidemias por parte de coletividades.
O desejável e louvável aumento da sobrevida das pessoas onde houve melhora das condições de vida e do acesso a ações e novos recursos de saúde carrega consigo o desafio de enfrentar condições prevalentes em idosos, sobretudo entre os muito idosos. Entre estas, a perda de memória, frequentemente associada à doença de Alzheimer, ocupa posição de destaque e exige preparo, dedicação, paciência e resiliência emocional de familiares e cuidadores profissionais. Assim como descrito no texto do escritor colombiano a perda de memória é processo progressivo e não instantâneo. Começa-se perdendo apenas um tipo de memória e o indivíduo tem consciência disso, o que lhe permite lançar mão de estratégias tais como escrever nomes e explicações que podem ser consultados. Alterações do sono também são frequentes nesses pacientes acometidos por perda de memória e isso também foi lembrado pelo escritor. Em fases muito iniciais a insônia pode ser até vantajosa, pois aumenta a produtividade e não traz maiores prejuízos. 
Essa passagem de "Cem anos de solidão” nos deixa curiosos sobre o que teria inspirado García Marques a escrever sobre uma epidemia de perda de memória. Teria ele convivido com algum familiar ou conhecido acometido por alguma síndrome demencial?
No que se refere à epidemia, García Marques escreve sobre medidas para prevenir o contágio de outras pessoas ou comunidades, sobre isolamento social e quarentena, e sobre mudanças no cotidiano a partir de epidemias. Os mesmos temas que invadem diariamente nossas redes sociais e mídias em tempos de pandemia por COVID-19. Ele menciona sentinelas, pessoas que desobedeciam recomendações e insistiam em manter contato com adoecidos, teoria sobre o mecanismo de contágio (por boca, por alimentos e bebidas contaminados) e o sucesso da quarentena, mantendo a peste restrita ao perímetro da cidade. 
Em 2020, o novo Coronavírus alastrou-se rapidamente pelos cinco continentes e exigiu medidas semelhantes àquelas descritas em Cem anos de solidão, e os comportamentos humanos não foram diferentes, principalmente no que se refere à determinação de isolamento dos enfermos, quarentena de cidades e desobediência de algumas pessoas.
Uma epidemia não se limita à ciência e medicina, mas diz respeito à vários aspectos da vida das pessoas, inclusive à literatura.    

1) Marquez GG. Cem anos de solidão. Havana: Ediciones Huracán, 1979.

Rubens Bedrikow

Campinas, 5 de março de 2020.

domingo, 29 de março de 2020

O passado ajuda a entender a Pandemia de Coronavírus

Dois mil e vinte será lembrado como o ano da Pandemia de Coronavírus (COVID-19), doença infecciosa causada por um coronavirus recentemente descoberto. Cerca de quatro meses após o primeiro caso de COVID-19 ser informado pelo governo chinês à Organização Mundial da Saúde, em dezembro de 2019, mais de 195 países apresentam casos. Os infectados ultrapassam os 350.000 e as mortes os 16.000. A letalidade da doença está acima de 3%, atingindo principalmente idosos e profissionais de saúde.(OMS, 2020) 
A atual pandemia evidenciou a importância de sistemas nacionais de saúde, das pesquisas básicas, epidemiológicas, clínicas, antropológicas e sociológicas, assim como desvelou a vergonhosa desigualdade social dentro de países e entre os países, apontando para a necessidade de investimentos tanto em pesquisas como na consolidação dos sistemas nacionais de saúde, como o brasileiro - Sistema Único de Saúde.
Diante de incertezas, medos e medidas coletivas de isolamento social em massa, convém rever o que epidemias anteriores nos ensinaram.
Há pouco mais de um século, entre 1918 e 1919, a pandemia de Gripe Espanhola fez entre 20 e 40 milhões de vítimas em todos os continentes, e pode ser considerada “a mais catastrófica pandemia da história”. (Bertolli Filho, 1989, p.33) Apenas na cidade de São Paulo, foram aproximadamente 350.000 infectados (65% da população) e cerca de 5.000 mortes (1% da população) em apenas sessenta e seis dias (Damacena, 2008; Bertolli Filho, 1989). São Paulo crescia rapidamente, em razão da riqueza do café e do comércio, e também por causa do início da sua industrialização. De acordo com Bruno (1954, p.1049), “A expansão da cidade e a formação de bairros novos se acentuou particularmente nas vésperas da primeira Grande Guerra”, acompanhada do surgimento de feiras, mercado e cortiços, ambientes propícios para aglomeração de pessoas e propagação de doenças transmissíveis. O medo provocado pela doença fez com que muitos paulistanos fugissem da cidade, interiorizando, dessa forma, a epidemia. Em Campinas, por exemplo, adoeceram 7317 moradores, dos quais faleceram 209, sendo, portanto, a letalidade igual a 2,86% (Bertolli Filho, 1989). 
Tendo em vista sua via de transmissão e manifestação clínica, semelhantes à do COVID-19, a  Gripe Espanhola constitui-se em exemplo importante de pandemia a ser revisitada neste momento, em especial porque também desvelou fragilidades da organização social e, em especial, da atenção à saúde, e, sobretudo, porque exigiu soluções que ainda podem nos ser úteis neste início de século XXI.
A Gripe Espanhola chegou ao Brasil vinda da Europa, com passageiros do vapor inglês Demerara, que partiu de Liverpool e fez escalas em Lisboa, Recife, Salvador e Rio de Janeiro. (Bertolli Filho, 1989). Assim como ocorreu com a COVID-19, a epidemia, no país, provavelmente atingiu primeiro a elite, o que fez com que fosse, erroneamente, chamada de “democrática”, quando, na verdade, como se constatou posteriormente, atingiu muito mais a população pobre. Foi chamada de “moléstia reinante”, “urucubaca”, gripe, influenza, peste, resfriado coletivo ou constipação.(Bertolli Filho, 1989, p.32)
Tanto hoje como em 1918, coube aos médicos assumirem a responsabilidade de orientar governantes e população com respeito à nova doença, e nos dois momentos, houve divergências de opiniões entre eles. Enquanto alguns mostravam-se preocupados, outros julgavam tratar-se de “resfriado coletivo”, bem menos fatal que a moléstia que afligia a Europa”. (Bertolli Filho, 1989, p.32). 
Em 1918, Artur Neiva, diretor do Serviço Sanitário, foi considerado o “supremo chefe da luta”. (Bertolli Filho, 1989, p.34) Em 2020, esse papel cabe ao ministro da saúde, Henrique Mandetta, mas também a secretários de saúde dos estados e municípios, e ainda a coordenadores de centros de contingência de coronavírus dos estados, como o Dr. David Uip, em São Paulo, e que, assim como Neiva, também se infectou durante a epidemia. (Portal G1, 2020) No estado de São Paulo, o coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus ganhou mais visibilidade e destaque do que o próprio secretário estadual da saúde.  
Neiva, assim como o presidente Bolsonaro, buscou convencer o povo que a doença não era mortal ou grave. (Bertolli Filho, 1989, p.34; Portal gov.br, 2020.) No entanto, diante dos doentes e mortos que se avolumavam, Neiva foi obrigado a recuar:
Em 28 de outubro, diante do poder devastador da peste, Neiva expediu um comunicado que tratava da falta de confiabilidade dos dados oficiais sobre o número de enfermos e mortos pela influenza. Anunciava também a virtual incapacidade do serviço em defender os paulistanos do mal que os ameaçava. A despeito do ar arrogante que o celebrizou, no dia seguinte o próprio Artur Neiva veio pedir humildemente a todas as pessoas e instituições capacitadas que socorressem a cidade[…]O pedido oficial de ajuda encontrou resposta pronta e generosa entre os paulistanos ainda não atingidos. Famílias da elite econômica do estado doaram grandes somas; o anônimo e pobre cidadão não ficou atrás e pôs, à disposição de quem precisasse, suas parcas economias e mais tudo o que tinha: roupas, alimentos, colchões, panelas, urinóis, bíblias, limões”. (Bertolli Filho, 1989, p.35)
A participação de Neiva e do presidente Bolsonaro nos revela uma série de aspectos importantes relacionados ao papel do gestor público no combate à epidemias avassaladoras. Em primeiro lugar, que a sociedade apostava e aposta no saber científico, representado por médicos e pesquisadores, para obter sucesso no controle do flagelo. Por esse motivo, são eles a ocupar os mais altos cargos públicos da área da saúde pública. Contudo, é durante essas epidemias que os limites da ciência e da saúde pública tornam-se mais visíveis, principalmente às elites e classe média, haja vista que já é de conhecimento dos menos favorecidos. Esses episódios mostram que certezas podem, rapidamente, se transformar em dúvidas e erros, e que medidas tomadas pelos governos de plantão não ficam imunes aos interesses econômicos e políticos, nem mesmo em tempos de epidemia. Isso fica evidente quando o presidente da República, em pronunciamento à nação, utiliza os termos histeria e pânico e recomenda a reabertura de escolas e comércio, quando a recomendação dos especialistas nacionais e internacionais vai no sentido contrário, de isolar as pessoas em suas casas a fim de evitar a transmissão. O aparecimento diante das câmeras de governantes e secretários de saúde ou especialistas, lado a lado, diz, por si só, dessa proximidade entre ciência e política. 
Outro aspecto a ser extraído do episódio envolvendo Neiva diante da epidemia de influenza  diz respeito à participação solidária daqueles que detêm a fatia maior da riqueza nacional. Assim como naquele momento a elite econômica doou grandes somas, agora também o combate à epidemia não pode prescindir dessa contribuição, seja ela voluntária ou compulsória, corrigindo, ao menos neste momento, a enorme desigualdade social do país. Assim como fez Neiva, poderia nosso atual ministro e outros membros do executivo incitar aquele 1% dos brasileiros que detém cerca de 50% da riqueza nacional a se fazer presente do ponto de vista econômico. Nesse sentido aponta a pesquisa realizada pela Oxfan Brasil em 2019, que revela que "84% concordam que é obrigação dos governos diminuir a diferença entre muito ricos e muito pobres” e que "77% concordam com o aumento dos impostos de pessoas muito ricas para financiar políticas sociais”. (Oxfan Brasil, 2020) Os muito ricos têm condições de construir hospitais em tempo hábil e montar fábricas capazes de produzir equipamentos de proteção individual em número suficiente para trabalhadores da área da saúde que, necessariamente, prestarão cuidados aos enfermos. 
No que se refere à iniquidade, via de regra, em praticamente todas as epidemias, são os mais pobres que adoecem em maior número, têm menos acesso a tratamentos e apresentam taxa de mortalidade mais elevada. Estudos mostrarão se o acesso a unidades de terapia intensiva foi democrático, igualitário, entre as diferentes classes sociais durante a epidemia de COVID-19.
A iniquidade também foi constatada na epidemia de meningite que assolou São Paulo na década de 1970 e que foi colocada sob censura pelo governo militar. De acordo com Barata (1988, p.35), o coeficiente de incidência da doença meningocócica, em 1974, foi muito mais elevado (192,67/100.000 habitantes) nas áreas mais pobres, representadas pelos distritos e subdistritos da periferia, do que na área central da cidade de São Paulo (103,71/100.000 habitantes). Esses achados não são novidade, pelo menos não desde o estudo de Louis-René Villermé que mostrou a associação entre taxas de mortalidade mais elevadas e pobreza. Essa informação, ainda que já bem conhecida, convém ser considerada no momento em que a doença chega às favelas das preferias das grandes metrópoles brasileiras. Importante frisar que a estagnação da economia, o aumento do desemprego e da pobreza fazem com que, para grande parte da população, residir em ocupações ou favelas seja uma das poucas alternativas possíveis. Como resultado tem-se que o número de aglomerados subnormais e da população favelada nas grandes cidades brasileiras aumenta a taxas maiores que a população total. Outro aspecto relevante é a elevada densidade demográfica em tais aglomerados, bem acima da média dos municípios como um todo. (Pasternak e D'ottaviano, 2016). É coerente, portanto, supor que essa população residente em favelas e ocupações encontre maiores dificuldades para permanecer em isolamento social, obter alimentos e outros gêneros de primeira necessidade - haja vista que muitos são trabalhadores informais que estarão impossibilitados de trabalhar -, e ter acesso a ações e serviços de saúde. Mais do que nunca, essa população precisa de atenção singularizada, com apoio financeiro e unidades de atendimento especializada em COVID-19 descentralizadas. 
Dentre os remédios que Bertolli Filho (1989, p.33) menciona no seu minucioso estudo sobre a Gripe Espanhola em São Paulo, encontra-se o "Maleitosan, vendido por quatro décadas como remédio específico para malária”, a base de Resorcinol-Quinina, e que se mostrou ineficaz no tratamento da influenza. A única medida que realmente teve algum impacto foi o isolamento social. As pessoas que podiam ficaram em suas casas, hábitos de moradia e alimentação  mudaram, como o aumento da ingesta de limão, as compras passaram, em alguns casos a serem entregues em domicílio. 
Passados mais de cem anos, o mundo científico quer novamente acreditar em um medicamento antimalárico, mas que também é usado no tratamento de lúpus e artrite, para o controle de uma epidemia de gripe. 

 Considerações finais
O conhecimento adquirido a partir do estudo de epidemias anteriores, em especial da pandemia de Gripe Espanhola, que assolou o país entre 1918 e 1919, pode nos alertar para os seguintes pontos, importantes no controle da epidemia de COVID-19:

  1. Tende a existir disputas de saberes e poder durante uma epidemia tão avassaladora;
  2. A sociedade aposta e confia, pelo menos no início da epidemia, que a ciência será suficiente para orientar corretamente as medidas a serem tomadas. Isso coloca médicos, e pesquisadores em evidência;
  3. "Certezas" iniciais podem dar lugar a incertezas se as medidas não surtem o efeito esperado;
  4. As medidas tomadas pelos governantes não são sempre apenas cientificamente embasadas, mas costumam estar contaminadas por interesses econômicos e políticos da elite que detém o poder no país;
  5. No início, os governantes tendem a minimizar a gravidade da epidemia, com o risco de retardar a adoção de medidas urgentes; 
  6. Uma epidemia da monta da epidemia de COVID-19 traz à tona a necessidade de um sistema nacional de saúde adequadamente financiado, universal, gratuito, integral e equânime, menos suscetível ao humor do mercado e de interesses econômicos e políticos;
  7. Não se pode colocar as cartas na promessa de um medicamento ainda sem evidência científica. É mais importante, neste momento, usar as duas únicas armas existentes: isolamento social e hospitais ou outras unidades adequadamente equipados para tratamento de pacientes com manifestação clínica grave da doença;
  8. Não se combate adequadamente uma epidemia sem investimento em pesquisa básica, clínica, epidemiológica, sociológica, antropológica e histórica;
  9. A epidemia não é democrática, pois atinge mais os pobres, seja em número de adoecidos , seja no acesso a ações e serviços de saúde e na mortalidade. Uma epidemia como a da Gripe Espanhola ou de COVID-19 desvela à sociedade a enorme desigualdade social do país;
  10. O controle da epidemia depende de recursos financeiros que estão na mão de poucos brasileiros muito ricos.