sábado, 3 de janeiro de 2015

A liberdade clínica

     A dor dava ares de muito forte. Inquieta, agoniada, a jovem se contorcia e não encontrava conforto sobre a estreita maca. Ora sentada, ora deitada, gemia por causa da dor no peito. Tanto a doutora como os auxiliares e enfermeiros, de repente, se sentiram profundamente implicados. Tamanho sofrimento lhes demandava atenção imediata. Um eletrocardiograma foi produzido de pronto e o soro contendo analgésico ganhava a veia do braço antes mesmo do exame concluído. A possibilidade de dor torácica provir de infarto do miocárdio, faz com que o registro da atividade elétrica do coração seja muito disponível nas unidades de saúde e amiúde realizado em situações como essa. Os olhos da doutora se detiveram no segmento ST - liga a onda S à onda T - do traçado. Buscava desnivelamento - indicativo de corrente de lesão no miocárdio - fase aguda de infarto.  A dúvida: haveria algum desnivelamento significativo na derivação V3? A resposta seria dada fora daquela unidade básica de saúde, porquanto decidiu-se transferir a jovem, ainda com dor violenta, a um serviço de urgência. 
O médico do pronto socorro descartou problema cardíaco e concluiu por alteração pulmonar após examinar a radiografia de tórax. A paciente obteve alivio da dor, mas seguia preocupada, agora com uma possível doença no pulmão. Mais tarde, descobriria que o pulmão era, pelo menos radiologicamente, normal. Residia próximo ao centro de saúde e a convidei a relatar o que lhe sucedera antes de começar a dor. 
Ficara viúva recentemente. O marido, que se tornara dependente químico, pusera fim às economias da família antes de partir. Sem o companheiro, viu-se obrigada a deixar a casa de aluguel e trilhar, com seus dois pequenos filhos, o caminho de volta à casa dos pais. Apesar da generosa acolhida, deu-se conta que não dispunham de renda suficiente. Apenas a mãe estava empregada. O pai aposentado por doença e o irmão sem trabalho. Outras duas crianças também dependiam do minguado recurso familiar. Discussões e brigas familiares passaram a fazer parte da rotina de todos. A jovem viúva mostrava-se angustiada com o grande estorvo financeiro, a dificuldade de vaga para os filhos na creche e a falta de perspectiva de emprego e, por conseguinte, de independência. A narrativa desse momento de sua vida, parecia trazer-lhe algum sossego. Encerrou concluindo que a dor no peito, provavelmente, decorria das recentes mudanças e desafios. Acreditava não sofrer de nenhuma doença orgânica. Nisso, parecia ter razão.
O cenário dessa conversa era o pequeno, mal ventilado e pouco iluminado quarto da casa improvisada para servir de centro de saúde do bairro. Estávamos tão próximos que podia sentir o cheiro de cigarro nos seus cabelos e roupas e perceber marcas na face sofrida e deprimida. Seu olhar vazio não condizia com seus vinte e poucos anos. Eu me esforçava em focar minha atenção no discurso da magricela, pálida e desanimada pessoa que buscava força interior para retomar a via de um sonho abruptamente interrompido. Enquanto isso, me indagava como a jovem enxergava a intervenção da equipe de saúde? Os detentores do saber médico lhe impuseram analgésico, eletrocardiograma, transferência em ambulância, atendimento em pronto socorro e radiografia de tórax. Decisões em consonância com a clínica hegemônica, respaldada pela ciência moderna.  No entanto, nada disso lhe trouxe alívio. Na verdade, serenou seu espírito apenas quando falou da sua vida. Quanto mais discorria sobre a história dessa parte da sua vida, mais mitigava o sofrimento interior e alijava a dor. Falar de si mesma ajudou-lhe mais que analgésicos e exames. Isso vai de encontro ao que preconiza a Clínica Ampliada: tirar o foco do biológico e não se limitar à doença, mas considerar também a subjetividade e a singularidade do indivíduo. Acrescentaria que a solução de numerosos problemas com os quais se deparam os profissionais de saúde está na história de vida das pessoas e não no desarranjo de seus órgãos. Como no caso da jovem acima, é preciso desobedecer as rígidas regras da consulta tradicional e deixar livre o discurso. Faz-se necessário transgredir os costumes e preceitos que regem a anamnese e protocolos de atendimento impostos pela ciência moderna. Liberdade para falar, capacidade de ouvir, possibilidade de criar novas soluções. Eis uma receita capaz de recuperar a potência da clínica sufocada por saberes científicos normativos.            


Rubens Bedrikow
Campinas, 21 de março de 2010.

A clínica, passo a passo

     Céu azul. Quase sem nuvens, para desespero nosso, convivendo com clima seco desde o final do ano. Terra vermelha, fina, recobrindo as folhas mais rasteiras. O arrasto dos calçados erguia a poeira até olhos e narizes. O horário de verão encerrara-se há menos de duas semanas. O sol surgia cedo. Aquele início de manhã prenunciava dia quente. Aos poucos, as pessoas iam chegando. 
A lépida idosa empunhava a bengala e dava a outra mão para a filha. Sua marcha era ágil, leve, pouco usual entre os que atingem os oitenta e oito. Dizia que os parentes tinham o hábito de morrer cedo, mas ela teimava em viver. Sua filha, sorridente, pele morena, lisa, agia como cuidadora atenta e carinhosa. Retribuía generosamente os cuidados que recebera na infância. Ajuntaram-se aos demais, reunidos para mais uma caminhada pelo bairro. 
Uma menina alegre, pura, ávida por conhecer plantas e bichos, escolhera acompanhar a avó em vez de dormir até mais tarde. Esta, por sua vez, ao fitar os olhos na neta, exibiu um vistoso sorriso. Vaidosa, bronzeada, com luzes no cabelo, aparentava estar bem consigo mesma. Como foi bom vê-la assim, cheia de vida, recuperada de injusto sofrimento que seu destino lhe impusera por ocasião da doença maligna que consumiu seu marido ao longo de penosos meses. Os olhos, antes lacrimosos, agora iluminavam os espaços por onde transitava. Não era a única. 
O circunspecto cearense sentado à minha frente conhecera infortúnio parelho. A brancura de seus bigodes bastos condizia com as cãs que lhe cobriam a cabeça como uma ligeira pasta de algodão, sem, por isso, subtrair-lhe o aspecto vigoroso e jovial que assumia tão logo entabulava conversação ou punha-se a caminhar. Certamente, na intimidade do lar, nos aposentos que continuava a frequentar, a lembrança da companheira que partira. As caminhadas, o Lian gong, o movimento vital expressivo, no convívio dos camaradas daquele arrabalde, tornaram-lhe possível levantar a cabeça e desdenhar os sintomas depressivos do alvorecer da viuvez. 
Por certo que os bons momentos vividos ali e o desejo de levar a velhice com saúde tornaram certa a presença diária de outro aposentado. As finas pernas daquele neto de imigrantes italianos, que no passado tanto pisaram as roças de café e algodão do interior do estado, estavam agora arqueadas. O andar lento e doloroso dos primeiros momentos do dia expressava a batalha diária contra a artrose, herança familiar que, há vários anos, confinara sua irmã a dois ou três quartos escuros. Ele não. Era teimoso. Coxeava por cerca de um quarto de hora. Em seguida, o corpo quente calmava a dor e lhe concedia o prazer de novamente explorar os caminhos que tanto conhecia. Entre velhos e novos conhecidos, ria e sorria. Fazia questão de, na roda, sentar-se ao meu lado pois, assim, era-lhe possível escutar as leituras, sem fazer caso a seus ouvidos octogenários que reclamavam descanso. Era ele quem puxava o “Pai Nosso”, segurando firme as mãos ao lado, e dava por encerradas as atividades logo após o “Amém”. 
Sob um chapéu de palha com largas abas, a senhora de tez clara, alegre, expansiva, vinha de longe. Falava claro e forte. Destarte, conquistara a simpatia de todos. Introduzira no grupo o costume de saudar o sol. Os participantes, em círculo, davam as mãos e aproximavam-se do centro dizendo “Bom dia sol”. Tradição e misticismo rotineiros. Dada a estiagem, saudou-se a chuva também. Sua filha estreara como poetisa há cerca de um ano, influenciada pelas leituras que usualmente ali fazíamos. Declamadas em voz baixa, suas poesias cuidavam de sofrimento interior. Mexiam com ela e conosco.
O grupo partiu na hora combinada, antes das oito, sob sol ardente. Dois, três, quatro pessoas dividiam as mesmas prosas. Ao todo, eram mais de vinte.
Assim parte o grupo pelas ruas afora…
José junta o passo com João,
que já tinha juntado o passo com Antonio…
E assim vai seguindo o passo a passo percorrendo as ruas,
hora pela terra, hora pelo asfalto…
Como a vida, o trajeto vai mudando
e o passo também…
E o corpo vai se movimentando.
E olhando bem não dá para saber qual parte se movimenta mais,
A língua ou os pés?
E Vera juntou o passo com Maria e lá se vai conversa…
E o corpo vai em movimento com todas as suas peças…
Se a língua não fala, a mente, ao contrário, não para de tagarelar
em mil pensamentos que também vão juntando o passo
e assim vão seguindo muitos pés, muitas línguas e muitas mentes.
E tem o médico que junta o passo
e vai conhecendo histórias que só podem ser ditas
no passo junta passo…
E o corpo vai vencendo a cada andar o seu limite,
afinal, os pés não estão sós,
e um passo junto com outro passo vai criando poder.
Poder para superar, lutar, sentir-se igual e fazer parte.
Ah, mas o doutor, antes atrás da mesa, agora faz parte
porque seus pés estão juntos com muitos pés…
No passo junta passo.
(Maria Leny Freire - agente comunitária de saúde - 2013)

Abacateiro, guaranazeiro, mangueira e jaqueira. O norte, a roça, a infância. A menina provou o fruto do guaraná. Doce, muito doce, mas menos gostoso que o refrigerante. Alguém lhe disse para observar o desenho do fruto no rótulo da embalagem da bebida, no supermercado. Levou consigo alguns. Mais entusiasmada mostrou-se com os abacates que pretendia comer em casa. Um espirituoso brincou que, se ao invés de uma maçã, tivesse caído uma jaca sobre Isaac Newton, talvez ele não tivesse sobrevivido ao trauma craniano para escrever a lei da gravidade. Passeio, brincadeira, atividade física, aprendizado, troca de saberes. Fora da sala de aula.
A mangueira sombreou nossa demora. Água, alongamento e recompactação do grupo que se estendera à medida que avançara. A moça risonha, com traços finos realçados pela maquiagem, amiúde ia à frente. Seu entusiasmo era evidente, mas contava que, no passado, não gostava de atividades físicas. Agora, principiava os dias caminhando, dançando ou alongando. 
Protegida do sol por uma fina sombrinha vermelha, a senhora esbelta, com o característico acento nordestino, espalhava simpatia. Durante sua viagem à Bahia, revendo familiares, relatou orgulhosa suas caminhadas ao lado do doutor. 
Muitos carregavam na memória a nostalgia da infância e juventude no agreste brasileiro. Pés nus, enxada pesada, namoros na roça, corpo afundado no colchão de palha, tênue luz das lamparinas, medo das cobras, bocados de comida amassados com farinha entre os dedos e levados com a mão até a boca. 
Uma cobra passou e se escondeu. Um dos homens a perseguiu, porém, em vão. Mulheres trocaram segredos culinários, especialmente os que levam guizos crotálicos. Homens recordaram as vezes que toparam com animais grandes e perigosos. Filhos haviam sido mordidos. Remédios caseiros e reza. A cidade ficava longe, praticamente inacessível. Felizmente, ninguém morreu.
O doutor não cansava de admirar a riqueza da diversidade ali presente. Durante a caminhada, trocava palavras com aquelas pessoas que já não eram apenas pacientes. Cada um trazia um pouco de seu passado, sabedoria, afeto, medo, esperança. Raramente conversavam acerca de doenças. 
Foi o acaso que levou para dentro do grupo o hábito da leitura após as caminhadas. Um dia, há cerca de um ano, o doutor fez uma brincadeira com o grupo. Pediu para quem fosse nascido em São Paulo ficar à esquerda e os demais à direita. Em seguida, que se posicionassem à esquerda aqueles que haviam trabalhado na roça e os outros à direita. E assim por diante, de forma a todos se conhecerem melhor. Quando pediu que aqueles que gostavam de ler passassem para o lado direito, foi surpreendido pelo senhor que não se moveu. Nunca aprendera a ler. Nesse mesmo dia, o doutor começou a ler. “Amor” e “O barbeiro”, de Luiz Vilela. Junto a eles, declamou Manoel de Barros, Vinicius de Morais, Patativa do Assaré. Leu Machado de Assis, Tolstói, La Fontaine. Naquele dia, recitou “A uma lavadeira”, de Gilka Machado, e, em seguida, pensando na menina ali presente e no passado rural da maioria, escolheu “A aranha e a mosca”, que Afonso Lopes de Almeida escreveu em 1914:

 À beira de larga estrada
Uma aranha tece a teia.
A trama, fina e doirada, 
À luz do sol reverbera…

E a aranha, encolhida e feia,
Fica à espera.

Voa ali, pousa adiante,
Rápidas curvas descreve…
Ébria de luz, fulgurante,
Segue a própria fantasia!

Céu azul, ar puro e leve…
Que lindo dia!

Lá vem a mosca. O caminho
Esplende ao Sol, que se deita
No Ocaso devagarinho…
Zum-zum… Lá vem… Presa rica!

E a aranha, de longe à espreita,
Imóvel fica.

Lá vem. Descuidada e linda,
Zumbe no ar. Silêncio em roda.
Por tudo uma calma infinda
A tarde suave estende…

E a mosca, na teia, toda
Se enreda e prende.

Zum-zum!… Aflita e medrosa,
As lindas asas agita.
Cansa-se lenta; e, furiosa,
Mais sofre, mais se arrepela.

E a aranha, que a fome incita,
Vai sobre ela.

Um lavrador que passava,
Estende a mão rude e tosca,
Liberta a mísera escrava
Que entre as árvores se some…

E a aranha, perdendo a mosca,
Morreu de fome.                          

Alguns, com pavor de aranhas, consideraram o final feliz. Para outros, a aranha deveria ser preservada por ser útil no controle da população de insetos. Não importa. A prosa foi boa. 
Deixaram-se, então, uns aos outros, lentamente. Cada um que se retirava desarranjava um pouco mais o todo, até que o todo desapareceu, restando apenas na memória de cada um. Até que se reunissem novamente.
Àquela hora, cabia ao doutor trocar a rua pelo consultório. Tirar o calção e vestir o jaleco. Substituir a obra literária pelo estetoscópio.



Rubens Bedrikow
Campinas, 1 de março de 2014.
Caminhada da sexta-feira - Campinas-SP


Nosso caminho


Pausa à sombra


Olha a cobra

Próxima Estação: CAPS

      Manhã de quinta-feira, pego os três alunos do 5˚ ano de medicina em frente à Faculdade de Ciências Médicas e deixo a Unicamp em direção ao CAPS. Esta disciplina de Saúde Coletiva permite criar, improvisar, montar o estágio conforme o caso apresentado pela unidade básica de saúde, no intuito de construir um projeto terapêutico singular. Casualmente, os três alunos pensaram na Psiquiatria como opção para o futuro. Não tive tempo de avisar da visita, mas contava com o acolhimento porta aberta daquele Centro de Atenção Psicossocial. Eu estava certo.
Nem bem cruzamos o portão do grande sobrado e topamos com o sorridente funcionário da GOCIL. Apresentei-me, e os alunos que me acompanhavam, não sem frisar o interesse pela especialidade de Pinel e Basaglia. O tal funcionário, alto, forte, moreno, com uma tiara na cabeça, devolveu: “Boa escolha! Trabalhar com Saúde Mental é muito bom! Eu mesmo vou estudar psicologia”. Mais um pouco de conversa e perguntei se ele gostava de trabalhar ali. “Eu amo”, disse ele. Em seguida, nos apresentou à auxiliar de enfermagem que se preparava para a caminhada com usuários do serviço. Bermuda, chapéu para proteger do sol, tênis, óculos e um belo sorriso. Ainda na parte externa, foi logo contando da caminhada e nos conduzindo até uma sala onde seríamos recebidos por outra funcionária. Percebemos seu amor pela profissão e nem estranhamos quando ela parou para dedicar mais tempo ao relato. Enquanto isso, pacientes passavam, chegavam, preparando-se para a atividade. Repeti a ela a mesma pergunta que fizera ao funcionário da GOCIL e obtive a mesma resposta: “Eu amo”. Adentramos a casa, dizendo “oi” aos pacientes que nos observavam, passamos diante do posto de enfermagem, subimos a escada e paramos no interior da sala de reuniões da equipe. Lá estavam vários profissionais que discutiam os projetos terapêuticos ou passavam plantão. Todos compenetrados, mas com um olhar e sorriso acolhedores em nossa direção. Para mim, pessoas ou fisionomias conhecidas, familiares. Da sacada da sala, podíamos observar os pacientes no pátio da casa, alguns sentados, outros nas espreguiçadeiras, outros caminhando, enquanto um homem terminava a limpeza da piscina. Fomos convidados a nos sentar em volta da mesa para um papo com a psicóloga Iara. Esta também não tardou a exibir seu ar risonho. A contração dos músculos faciais para expressar alegria parece ser a marca do lugar. Iniciou pela discussão do que foi a reforma psiquiátrica. O que passaria pela cabeça dos três alunos que, olhares atentos, aprendiam sobre a reabilitação psicossocial naquele espaço, cercados de pessoas com sofrimento mental grave, ali inseridos em diversas oficinas e grupos? Aprendizado longe da sala de aula, mas tão perto do real. No papel de professor, estava satisfeito de oferecer tal oportunidade a eles. Muito provavelmente, o resultado seria outro dentro de uma sala de aula. A conversa fluiu fácil, as perguntas surgiram naturalmente e os olhos brilharam. Para trabalhar ali é mister aprender a atuar em equipe, coconstruir projetos terapêuticos com os colegas. “Uma segunda residência no CAPS”. Andamos pelos diferentes cômodos e espaços do sobrado. Testemunhamos a postura afável dos profissionais diante dos pacientes que os chamavam pelos nomes: “Iara, Iara…”. Dois gêmeos dormiam, um sobre a mesa de bilhar e o outro sobre o piso. O que fugiu, retornou. Apertamos mãos, proseamos, admiramos os trabalhos produzidos nas oficinas e lemos o conto do abacaxi falante. Uma paciente dizia ser psicóloga e quis conversar conosco. Achou as alunas lindas, tanto a morena como a loira. Interessou-se pelo crachá: “Ah, vocês são da Unicamp; minha mãe morreu lá. Por que vocês não a salvaram?” No passado, com certeza, aquelas pessoas só seriam encontradas em prisões ou manicômios. Mas hoje, estão ali, convivendo conosco, entrando e saindo do CAPS quando querem. Essa reforma acontece no cotidiano e pode ser apreendida ali, nas conversas, nos gestos, nos toques. Mas só faz sentido porque a clínica permeia tudo. 
Agradeço a gentileza, disponibilidade e boa vontade com que os funcionários do CAPS  Estação nos receberam.
O trabalho de vocês faz muita diferença para muita gente.
Parabéns.

Rubens Bedrikow
FCM - Depto. Saúde Coletiva - Unicamp 
  CS Rosália - PMC

Campinas, 24/1/2014

Dengue: urgência

        RESUMO
No ano de 2014, Campinas - município da região sudoeste do Brasil, a cerca de 100 km de São Paulo - viveu a pior epidemia de dengue de sua história com mais de 30.000 casos. Desde 2005, o mês de abril é o de maior incidência da doença. Interessou aos pesquisadores conhecerem os motivos de uma epidemia dessa magnitude e a capacidade de atendimento de um serviço de urgência durante o mês de abril de 2014. Utilizou-se como fonte de dados secundários livros de registro e de notificações do serviço estudado. Concluiu-se que fatores climáticos como temperatura mínima elevada e baixa precipitação durante os primeiros três meses do ano, aliados à situação imunológica favorável à infecção pelo sorotipo DENV-1 e à não contratação em número suficiente de profissionais que atuam na prevenção da doença, parecem ter contribuído significativamente para a epidemia de 2014. O número de atendimentos clínicos no serviço de urgência estudado foi muito baixo durante o mês de abril de 2014, acarretando desassistência de pacientes adoecidos com dengue durante o pico da epidemia. 

Palavras-chave: Dengue; Epidemias; Serviços Médicos de Emergência; Gestão em Saúde.

ABSTRACT
In 2014, Campinas - a southeastern Brazilian city about a 100 km from Sao Paulo - had its worst dengue epidemic with more than 30.000 cases. Since 2005, April is the month  with the highest incidence of the disease. The authors’ purpose was to investigate the reasons for an epidemic of such magnitude and the response capacity of an emergency service during the month of April 2014. Record and notifications’ books of the emergency service served as secondary sources. It became apparent that climatic conditions such as high minimum temperature and low precipitation during the first three months of the year, combined with immunological situation favorable to the infection by DENV-1 serotype and with the not hiring enough number of workers in charge of disease prevention actions, contributed to the 2014 dengue epidemic. The number of clinical consultations in the emergency service studied has been very low during April 2014, leading to lack of medical attention of people sick with dengue at the peak of the epidemic. 
 
Key-words: Dengue; Epidemics; Emergency Medical Services; Health Management.

INTRODUÇÃO
O ano de 2014 será lembrado como o da maior epidemia de dengue da história da cidade de Campinas com cerca de trinta mil casos confirmados até o mês de maio.1 Abril, no entanto, costuma ser o de maior incidência da doença desde 2005.1 Em geral, nesse período, já não bastam as medidas de prevenção, de eliminação de criadouros ou de combate ao vetor. Dado o elevado número de pessoas infectadas e sintomáticas, faz-se necessário a assistência adequada aos pacientes a fim de aliviar o sofrimento e reduzir a letalidade das formas graves da doença. Tanto as equipes que atuam nas Unidades Básicas de Saúde como nos Pronto Atendimentos devem estar aptas a cuidar de pessoas com sintomas da doença.2 Este estudo buscou conhecer alguns aspectos do atendimento clínico de pessoas com idade igual ou superior a 14 anos no Pronto Atendimento Municipal da região norte do município de Campinas, onde se registrou o segundo maior coeficiente de incidência da doença em 2014.1 

A dengue
A dengue é uma doença febril aguda que se manifesta com cefaléia, dor nas articulações, mialgia, prostração, anorexia, astenia, dor retroorbital, exantema e prurido cutâneo. Dor abdominal generalizada é mais frequente em crianças. Manifestações hemorrágicas como petéquias, epistaxe, gengivorragia e metrorragia são mais comuns em adultos, principalmente ao fim do período febril. Além de quadros hemorrágicos mais graves, a febre hemorrágica da dengue pode cursar com choque decorrente de aumento da permeabilidade vascular, hemoconcentração e falência circulatória.3  A positividade da prova do laço - aparecimento de petéquias após manter o esfigmomanômetro insuflado no ponto médio da pressão arterial por cinco minutos - evidencia fragilidade capilar, sinal de alerta para o risco de febre hemorrágica da dengue.3
O agente etiológico é um arbovírus do gênero Flavivirus, transmitido por mosquitos do gênero Aedes, sendo a espécie Aedes aegypti a mais importante nas Américas e igualmente responsável pela febre amarela urbana.3 O nome Aedes vem de aedos - poetas gregos que dedilhavam liras - em razão das listas negras no dorso do mosquito, lembrando o instrumento.4 A origem africana do inseto foi eternizada no descritor específico aegypti.4 
A escravidão e os navios negreiros romperam esse equilíbrio ecológico. A partir do século XVI, o Aedes aegypti emigrou repetidas vezes da África para as Américas no interior dessas embarcações, em promiscuidade com mulheres e homens portadores de formas pouco sintomáticas da doença. Nos barris de água potável e nas coleções de água empoçada as fêmeas acharam o meio ideal para incubar seus ovos, dos quais eclodiram larvas que, ao atingir a vida adulta, infectam-se picando portadores da doença, entretendo-a em vários ciclos reprodutivos até alcançar as Américas.5
A transmissão se dá pela picada do mosquito após um repasto de sangue infectado, no ciclo ser humano-Aedes aegypti-ser humano. Não há transmissão por contato direto de um doente ou de suas secreções com pessoa sadia, nem por intermédio de água ou alimento. O período de viremia - presença de vírus no sangue humano - inicia-se um dia antes do aparecimento da febre e dura até o 6˚ dia da doença. Apenas durante esse período é que o ser humano transmite o vírus ao mosquito, indo alojar-se nas glândulas salivares da fêmea. Após um período de incubação que dura de oito a doze dias, a fêmea do mosquito é capaz de transmitir a doença até o final de sua vida (seis a oito semanas).3
Há referências de epidemias de dengue no Brasil desde o século XIX.3 Aceita-se que a epidemia de febre reumática eruptiva que assolou o Rio de Janeiro e Bahia entre 1846 e 1848 tratava-se, na verdade, de dengue. Ficou conhecida como polca, dança então muito em moda. “O doente ficava com as articulações dos membros inferiores de tal modo afetadas e doloridas, que ao se locomover simulava ensaiar os passos da polca”.6 Segundo Steffen4, estratégias de combate à febre amarela pelo controle do Aedes, como aquela pioneira em Sorocaba (SP), em 1901, e coordenada por Emílio Ribas, alcançaram a erradicação quase total do mosquito em 1942, reintroduzido no início dos anos setenta, oriundo da América Central. Segundo Braga e Valle7, a Organização Pan-Americana de Saúde e a Organização Mundial de Saúde coordenaram eficientes programas de combate ao Aedes aegypti em todos os países latino-americanos, entre o final da década de 1940 e a década de 1950. No Brasil, o último foco do mosquito teria sido extinto em 1955, na zona rural do município de Santa Terezinha, na Bahia.7 A epidemia que atingiu São Paulo em 1916 recebeu o nome de urucubaca.4 Assim como em 1923, na cidade de Niterói, não houve diagnóstico laboratorial.3 A primeira epidemia documentada clínica e laboratorialmente foi a de 1981-1982, em Boa Vista (RR). Em 1986, epidemias importantes ocorreram no Rio de Janeiro e algumas capitais do Nordeste.3 O aumento significativo da incidência de dengue a partir da década de noventa decorreu da ampla dispersão do mosquito transmissor no território nacional.3
Em Campinas (SP), o Aedes aegypti já produzira enorme estrago por ocasião da epidemia de febre amarela de 1889. A elevada taxa de mortalidade - de 20 a 25% - dizimou grande parte dos vinte mil habitantes e fez muitos outros deixarem a cidade que teve sua população reduzida a aproximadamente cinco mil pessoas. Entre abril e maio desse ano, Adolpho Lutz acorreu a Campinas com o intuito de conter a epidemia:
“Quando em 1889 fui chamado, com urgência, de São Paulo para Campinas onde já não havia mais médicos, encontrei uma pandemia bem acusada de febre amarella e esperava todos os dias ser accomettido, mas escapei de um ataque febril”.8
Interessante que, da mesma forma que aconteceu neste ano de 2014, em que experimentamos a maior epidemia de dengue da história de Campinas, em 1889, durante os três meses de verão, quase não choveu e a temperatura subiu mais que nos anos anteriores.9 De acordo com Câmara et al.10, a temperatura mínima elevada nos primeiros meses do ano parece ser o fator crítico para definir a possibilidade de uma epidemia numa população suscetível imunologicamente e as epidemias tendem a ser mais frequentes nos anos em que o volume de chuvas no verão é pequeno (abaixo de 200 mm). Entre 1988 e 2008, a temperatura mínima média nos meses de janeiro, fevereiro e março foi inferior àquela observada este ano (Tabela 1) e o índice pluviométrico superior ao de 2014 (Tabela 2).11,12
O número de casos registrados até o mês de maio deste ano - ao redor de trinta mil - supera de longe os da epidemia de 2007, com cerca de onze mil casos, até então a mais importante da cidade. De acordo com o Informe Epidemiológico Dengue de 14 de março de 2014, elaborado pelo Departamento de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, havia 
uma situação complexa do ponto de vista epidemiológico, pois o sorotipo DENV-1 não predomina há muitos anos em Campinas, devendo haver uma grande proporção de pessoas que são susceptíveis a este vírus[…]o que aumenta o risco de uma epidemia com maior número de casos e com uma proporção maior de casos graves.13
O padrão epidemiológico observado desde a década de 1990, caracteriza-se por períodos de baixa transmissão intercalada com a ocorrência de epidemias, geralmente associadas à introdução de novo sorotipo ou à alteração do sorotipo predominante. A cada novo ciclo epidêmico tem sido constatado aumento na incidência14. Portanto, a reintrodução do sorotipo DENV-1 após alguns anos ausente, juntamente com as condições climáticas favoráveis, explica a atual epidemia e, pelo menos em parte, o aumento da incidência em relação às epidemias anteriores.
De acordo com membros do Conselho Municipal de Saúde de Campinas, a magnitude da epidemia poderia ter sido menor caso o poder público municipal não tivesse se mostrado omisso na contratação de agentes comunitários de saúde e agentes de controle ambiental ou nas ações de vedação de caixas d’água ou remoção de criadouros e entulhos em geral em áreas de ocupação recém despejadas e urbanas como um todo.15      

O Serviço de Urgência 
Interessou-nos neste estudo conhecer como se deu a assistência de urgência durante o mês de abril por entender que tais ações são cruciais nesse período que, em geral, cursa com elevado número de pessoas adoecidas.  
Sabemos que o período de maior incidência em Campinas nos últimos 15 anos tem sido os meses de março, abril e maio, sendo assim, é fundamental que a rede de assistência tanto pública como privada esteja preparada para atendimento de uma quantidade maior de casos, assim como de casos graves de dengue neste período.13
  Escolhemos para estudo, o Pronto Atendimento Padre Anchieta (PA Anchieta), localizado na região norte de Campinas que conta com aproximadamente 220.000 habitantes. Trata-se de instituição pública municipal voltada ao atendimento médico de urgência/emergência.16
  Em 2011, o PA Anchieta foi objeto de vistoria por parte do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.16 Naquela ocasião, o serviço contava com vinte e três médicos clínicos e vinte e um pediatras. A escala diária de trabalho médico previa cinco clínicos e três pediatras das 7 às 19 horas e três clínicos e dois pediatras das 19 às 7 horas. Cinquenta por cento das escalas médicas estavam incompletas. A média mensal de atendimentos entre janeiro e agosto de 2011 foi de 6.358 para clínica médica e 2.340 para pediatria. A origem da demanda de atendimento era da região norte de Campinas e adjacências (60%), municípios de Sumaré (20%) e Hortolândia (20%). Nova vistoria, realizada em outubro de 2013, revelou redução de 27% no número de médicos e escalas de plantões médicos incompletas fazendo com que a unidade trabalhe com a “porta fechada”, isto é, assista apenas pacientes classificados como graves no momento da classificação de risco.17 A diminuição do número de enfermeiros - 21%17 - contribuiu para que a classificação de risco não fosse realizada em todos os plantões. Houve ainda queda na produção mensal que oscilou em torno de 2.400 atendimentos. Portanto, o Pronto Atendimento Anchieta teve sua situação assistencial agravada entre 2011 e 2013 em virtude da redução de seu quadro de médicos e enfermeiros e demais profissionais de enfermagem.17
MÉTODOS
Trata-se de pesquisa descritiva. Os dados foram extraídos dos livros de registro preenchidos pelos recepcionistas e do livro de notificação de casos de dengue. Buscou-se o número de médicos clínicos presentes em cada período e o número de fichas de atendimento abertas. Interessou-nos ainda o número de casos de dengue notificados diariamente no serviço. A pesquisa restringiu-se a pacientes com idade igual ou superior a 14 anos - grupo etário atendido pelos médicos clínicos - e ao período de 1˚ a 30 de abril. Fez parte da pesquisa correlacionar o número de médicos nos diferentes plantões com o número de atendimentos realizados e os casos de dengue notificados.

RESULTADOS
Foram realizados, no total, 3234 atendimentos clínicos, o que corresponde a uma média diária de 107,8. Em dois dias - 4 e 6 - o número de atendimentos foi muito baixo - 54 e 50, respectivamente, ficando ao redor da metade da média mensal.
Em nenhum dia do mês de abril a escala médica esteve completa com 5 médicos durante o dia e 3 durante a noite. Apenas na manhã do dia 18 e na tarde do dia 21 alcançou-se o número de 5 médicos. No que se refere ao período noturno, o número previsto de 3 médicos foi alcançado apenas em nove oportunidades.
Quando não se alcançou o número mínimo de 3 médicos em cada turno, o número de atendimentos esteve abaixo da média de atendimentos do mês. Os dias 4,6 e 22 foram aqueles com menor número de atendimentos - 54, 50 e 63, respectivamente. Nesses dias o número de médicos presentes foi de 2 ou 1 em cada período. Em nenhum desses dias, 3 ou mais médicos estavam presentes. Os dias 7, 21 e 26 tiveram o maior número de atendimentos. No dia 7, estavam presentes 2 médicos pela manhã, 4 à tarde e 3 à noite. No dia 21, trabalharam 4 pela manhã, 5 à tarde e 2 à noite. Não dispomos de informação sobre o período da manhã do dia 26, mas sabemos que à tarde estavam presentes 3 médicos e à noite 2. Portanto, em todos esses três dias, em pelo menos um período, estavam presentes 3 ou mais médicos. Observou-se que com menos de 3 médicos o volume de atendimentos é baixo quando comparado com dias que contam com pelo menos 3 médicos no plantão. Em média, quando menos de 3 médicos trabalharam durante o dia, foram realizados apenas 85,7 atendimentos, mas quando 3 ou mais médicos estavam presentes, essa média elevou-se para 131,3.
Em abril, foram realizadas 291 notificações de dengue. No dia 6, que teve o menor número de atendimentos - 50 - foi notificado apenas um caso. 
Existe uma relação direta entre o número de atendimentos e o número de notificações de casos de dengue durante o mês de abril de 2014. Observa-se que nos dias com número baixo de atendimentos foram notificados poucos casos de dengue.
Treze por cento dos 291 casos de dengue apresentaram prova do laço positiva, um sinal de potencial gravidade da doença.

DISCUSSÃO
A média de atendimentos clínicos - pacientes com 14 anos de idade e mais - durante o mês de abril de 2014 - mês com maior incidência de dengue - ficou em 106,7/dia, muito abaixo da média de 2011 - 205,1/dia - informada no documento “Avaliação dos serviços de urgência e emergência do município de Campinas/SP”, elaborado pelo Cremesp/Campinas.16 Portanto, houve uma queda de quase 50% no número de atendimentos clínicos no PA Anchieta entre 2011 e 2014. Vistoria realizada pelo Cremesp/Campinas em 201317 mostrou uma produção mensal ao redor de 2.400 nos meses de agosto e setembro, o que corresponde a cerca de 80 atendimentos por dia. Em outras palavras, a produção do PA Anchieta sofreu forte queda desde 2011. Algumas explicações para esse fato têm sido discutidas. Uma delas, e que parece ser muito relevante, é a exoneração, em 2012, de médicos contratados por um serviço de saúde conveniado com a prefeitura de Campinas, em razão do encerramento desse convênio. Os concursos e processos seletivos realizados não foram capazes de recompor as equipes. Outra explicação diz respeito a rotatividade de profissionais, um desafio antigo para os gestores municipais. Um seminário organizado em 2008 revelou diversas causas para o fenômeno tais como baixos salários, empregos múltiplos e ambiência inadequada.18
Em nenhum dia o número esperado de médicos (5-5-3) foi alcançado nos 3 períodos (manhã-tarde-noite).
A correlação observada entre o número de médicos e o número de atendimentos mostra que a baixa produção de consultas deve-se à falta de profissionais e provavelmente não à redução da demanda. Isso fica muito claro ao se comparar o volume de atendimentos  de dois dias consecutivos - 6 e 7. No dia 6, estavam presentes apenas 2 médicos por turno e foram atendidas apenas 50 pessoas. No dia seguinte, com 4 médicos à tarde e 3 à noite, foram atendidas 179 pessoas. Da mesma forma, enquanto apenas 1 caso de dengue foi notificado no dia 6, foram 21 no dia 7. Assim, pode-se afirmar que a falta de solução para o problema de captação e fixação de médicos acarretou desassistência de pessoas com suspeita de dengue no PA Anchieta. Provavelmente, os pacientes retornavam às suas casas ou buscavam atendimento em outro serviço.  É possível supor que os habitantes dos bairros próximos ao PA Anchieta foram “aprendendo” que não adiantava procurar esse serviço uma vez que recebiam com frequência uma resposta negativa às suas tentativas de serem ali atendidos. Isso explica, em parte, a redução do número de atendimentos e nos obriga a procurar saber onde essas pessoas têm buscado ajuda. Essa situação torna-se mais grave ainda na vigência de uma epidemia de dengue quando a demora no diagnóstico e início do tratamento pode comprometer a saúde e vida dos doentes. De acordo com as Diretrizes Nacionais para a Prevenção e Controle de Epidemias de Dengue19, a “organização da rede de serviços[…]é fundamental para a redução da letalidade por dengue” e isto inclui
Profissionais qualificados e em quantidade suficiente para atendimento das atividades propostas. Garantir o atendimento médico e a realização de exames de controle dos pacientes agendados para retorno à unidade estabelecida. Identificar e preparar unidades de saúde para atendimento em regime de 24 horas que funcionarão durante a epidemia, como, por exemplo, hospitais-dia e outras unidades, em reforço às demais unidades estabelecidas com este fim. 

CONCLUSÕES
As principais conclusões deste estudo são:
  1. Fatores climáticos como temperatura mínima elevada e baixa precipitação durante os primeiros três meses do ano, aliados a situação imunológica favorável a infecção pelo sorotipo DENV-1 - que não circulava havia alguns anos - e a não contratação em número suficiente de profissionais que atuam na prevenção da doença, parecem ter contribuído significativamente para a epidemia de 2014. 
  2. O pronto atendimento municipal da região norte de Campinas experimentou importante queda do número de médicos e profissionais de enfermagem entre 2011 e 2013, o que repercutiu na baixa produção observada desde 2013.
  3. Em nenhum dia do mês de abril de 2014, a escala de médicos clínicos esteve completa. 
  4. Quando o número de médicos clínicos foi inferior a três, o volume de atendimentos foi muito baixo. Isto porque, nessa situação, a “porta” do pronto atendimento permaneceu fechada. Ao contrário, nas ocasiões em que três ou mais médicos estavam presentes, houve aumento significativo dos atendimentos.
  5. O volume de atendimentos clínicos no pronto atendimento municipal da região norte de Campinas foi muito baixo durante o mês de abril de 2014, pico da epidemia de dengue. 
  6. O número insuficiente de médicos clínicos e o fechamento frequente da “porta” do pronto atendimento acarretaram desassistência de pacientes adoecidos com dengue durante o pico da epidemia de 2014. 

Referências bibliográficas
1. Campinas. Secretaria Municipal de Saúde. Departamento de Vigilância em Saúde. Síntese dos Dados sobre Dengue em Campinas em 29 de maio de 2014. 2014b.
2. Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Programa Nacional de Controle da Dengue. Brasília, 2002.
3. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de Vigilância Epidemiológica. 6. ed. - Brasília: Ministério da Saúde, 2005.
4. Steffen E. O anjinho dos pés tortos e outras histórias. Itu: Ottoni Editora; 2005.
5. Varella D. O médico doente. São Paulo: Companhia das letras; 2007. 
6. Santos Filho LC. História Geral da Medicina Brasileira. Volume 2. São Paulo: Editora Hucitec; 1991.
7. Braga IA, Valle D. Aedes aegypti: histórico do controle no Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde.  2007; 16(2) : 113 - 118.
8. Corrêa MOA. A Saga de Adolpho Lutz no arquipélago do Hawaii. In: Antunes et al [organizadores]. Instituto Adolfo Lutz: 100 anos do laboratório de Saúde Pública. São Paulo: Editora Letras & Letras; 1992. p. 143-156.
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10. Câmara Fernando Portela, Gomes Adriana Fagundes, Santos Gualberto Teixeira dos, Câmara Daniel Cardoso Portela. Clima e epidemias de dengue no Estado do Rio de Janeiro. Rev. Soc. Bras. Med. Trop.  [serial on the Internet]. Apr [cited  2014  June  01] ;  42( 2 ): 137-140. Available from:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0037-86822009000200008&lng=en. http://dx.doi.org/10.1590/S0037-86822009000200008.
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12. AccuWeather.com. Campinas, BR - Tempo. 2014 Abril. [acessado em 1/6/2014]  [ cerca de 2 p.] Disponível em: http://www.accuweather.com/pt/br/campinas/45883/march-weather/45883?monyr=3/1/2014.
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15. Cunha FM et al. Dengue em Campinas: uma tragédia anunciada e evitável. In: O Metropolitano. Edição 054. Sábado, 19 de abril de 2014, p. A-4.
16. CREMESP. Delegacia Regional de Campinas. Avaliação dos serviços de urgência e emergência do município de Campinas/SP. Novembro, 2011. [acessado 6/6/2014] Disponível em: http://www.cremesp.org.br/pdfs/avaliacao_PS_campinas_2011.pdf
17. CREMESP. Delegacia Regional de Campinas. Reavaliação dos serviços de urgência e emergência do município de Campinas/SP em 2013. Janeiro, 2014.
18. Campinas. Secretaria Municipal de Saúde. Centro de Educação dos Trabalhadores de Saúde. Seminário Trabalho Médico no SUS - Campinas: desafios para a fixação. Campinas; 2008.  Não publicado.
19. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretrizes Nacionais para a Prevenção e Controle de Epidemias de Dengue. Brasília; 2009.

Saúde da Família como Medicina de Estado

        INTRODUÇÃO
A Estratégia de Saúde da Família (ESF), balizada pelos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), tem a missão de ser a estratégia estruturante principal da atenção primária no país. Trata-se de uma aposta do Estado brasileiro para diminuir as desigualdades de acesso e melhorar a qualidade de atenção à saúde. Alguns conceitos e princípios que regem o funcionamento da ESF identificam-se com características da medicina de Estado que se desenvolveu na Alemanha, no começo do século XVIII, e que Foucault descreveu no livro “Microfísica do Poder”.
A medicina de Estado
De acordo com Foucault, a medicina de Estado alemã representa a primeira etapa na formação da medicina social, seguida pela medicina urbana francesa e da medicina da força de trabalho na Inglaterra (FOUCAULT, 1984). Fez parte ou surgiu a partir de uma ciência do Estado que agrupava por um lado, “um conhecimento que tem por objeto o Estado[..]por outro lado[…]o conjunto de procedimentos pelos quais o Estado extraiu e acumulou conhecimentos para melhor assegurar seu funcionamento” (FOUCAULT, 1984). A prática médica resultante dessa ciência do Estado centrou-se na melhoria da saúde da população e se conduziu pelos princípios da “polícia médica”:
1˚) Um sistema muito mais completo de observação da morbidade do que os simples quadros de nascimento e morte. Observação da morbidade pela contabilidade pedida aos hospitais e aos médicos que exercem a medicina em diferentes cidades ou regiões e registro, ao nível do próprio Estado, dos diferentes fenômenos epidêmicos ou endêmicos observados.
2˚) Um fenômeno importante de normalização da prática e do saber médicos. Procura-se deixar às universidades e sobretudo à própria corporação dos médicos o encargo de decidir em que consistirá a formação médica e como serão atribuídos os diplomas. Aparece a idéia de uma normalização do ensino e, sobretudo, de um controle, pelo Estado, dos programas de ensino e da atribuição dos diplomas.[…]
3˚) Uma organização administrativa para controlar a atividade dos médicos.[…]um departamento especializado é encarregado de acumular as informações que os médicos transmitem, ver como é realizado o esquadrinhamento médico da população, verificar que tratamentos são dispensados, como se reage ao aparecimento de uma doença epidêmica, etc., e, finalmente, emitir ordens em função dessas informações centralizadas. Subordinação, portanto, da prática médica a um poder administrativo superior.
4˚) A criação de funcionários médicos nomeados pelo governo com responsabilidade sobre uma região, seu domínio de poder ou de exercício da autoridade de seu saber.[…]uma pirâmide de médicos, desde médicos de distrito que têm a responsabilidade de uma população entre seis e dez mil habitantes, até oficiais médicos, responsáveis por uma região muito maior e uma população entre trinta e cinco e cinquenta mil habitantes. Aparece, neste momento, o médico como administrador de saúde. (FOUCAULT, 1984).
Coube à medicina de Estado alemã aperfeiçoar e desenvolver a força estatal, isto é, “a força do Estado em seus conflitos, econômicos certamente, mas igualmente políticos, com seus vizinhos” (FOUCAULT, 1984).
Scliar (2002) reconhece na polícia médica alemã um “conceito eminentemente autoritário e paternalista, preocupado, sobretudo, com os aspectos legais das questões de saúde”. A polícia médica seria a forma de alcançar a ordem e “implica o poder da intervenção do Estado, que poderia não apenas colher as informações que julgasse necessárias sobre as pessoas, como também adotar medidas relacionadas ao modo de viver e à educação das crianças” (SCLIAR, 2002). 
Para Nunes (2000), “A Polícia Médica aparece como parte do esquema da organização do Estado cujo objetivo supremo era colocar a vida econômica e social a serviço da política do poder do Estado e, para isso, era fundamental um conhecimento completo da vida da população, a fim de controlá-la por meio de uma legislação que cobrisse todos os aspectos da sua vida, incluindo o controle da profissão médica”. 

A Estratégia de Saúde da Família (ESF)
A ESF nasceu com o nome de Programa de Saúde da Família (PSF), no momento em que o país buscava medidas concretas para consolidar uma reforma sanitária iniciada duas décadas e que já avançara ao incorporar seus princípios e diretrizes na Constituição de 1988. A indignação pela desigualdade de acesso da população e pela má qualidade do sistema de saúde foi um fator determinante para o surgimento do PSF.
Tem como objetivo principal “Contribuir para a reordenação do modelo assistencial a partir da atenção básica, em conformidade com os princípios do Sistema Único de Saúde” (BRASIL, 1997).
Andrade et al. definem a ESF como 
“um modelo de atenção primária, operacionalizado mediante estratégias/ações preventivas, promocionais, de recuperação, reabilitação e cuidados paliativos das equipes de saúde da família, comprometidas com a integridade da assistência à saúde, focado na unidade familiar e consistente com o contexto socioeconômico, cultural e epidemiológico da comunidade em que está inserido” (ANDRADE, BARRETO e BEZERRA, 2006).
De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), “As equipes de Saúde da Família devem estar devidamente cadastradas no sistema de cadastro nacional vigente” (BRASIL, 2012). A PNAB considera que cabe ao Estado “Planejar, apoiar, monitorar e avaliar a atenção básica” e “Estabelecer mecanismos de controle, regulação e acompanhamento sistemático dos resultados alcançados” (BRASIL, 2012).
A alimentação regular do Sistema de Informação de Atenção Básica (SIAB), constitui requisito obrigatório para recebimento dos incentivos oferecidos pelo Ministério da Saúde (MS) e permite aos gestores municipais, estaduais e federal o acompanhamento contínuo e a avaliação das atividades desenvolvidas. 
Outra ferramenta adotada pelo MS, capaz de monitorar e avaliar processos e resultados, é o Programa Nacional de Melhoria de Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ). Para isso, serve-se de indicadores contratualizados com as equipes de atenção básica. O PMAQ também exige a alimentação mensal do SIAB, do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) e do Módulo de Gestão do Programa Bolsa-Família na Saúde. Outra ação prevista é a avaliação externa das equipes de atenção básica.

DISCUSSÃO
Desde sua criação oficial, em 1994, a ESF vem ganhando importância e ampliando sua cobertura nos diferentes estados e municípios do país, alcançando o status de principal modelo de atenção à saúde no nível primário. Variados desafios - tais como a dificuldade de fixação de médicos em algumas equipes e o subfinanciamento do sistema de saúde como um todo - obstaculizam ou atrasam a implantação mais ampla da estratégia. Efeitos positivos da ESF têm sido observados, notadamente no que diz respeito à queda da taxa de mortalidade infantil, acompanhamento e controle de doenças crônicas, implementação de medidas de prevenção e diagnóstico precoce, identificação de problemas de ordem social no interior das famílias, preparação das equipes de saúde para lidar com os problemas a partir das famílias e da base territorial e a utilização de novas metodologias de trabalho (MARSIGLIA, 2007).   
O modo como se organiza a ESF e algumas funções que desempenha no sistema de saúde brasileiro, assim como diversas atribuições e atividades do profissionais das equipes de saúde da família, têm como origem ou apoiam-se em conceitos que estruturaram a medicina de Estado alemã, no século XVIII. 
Os moradores de determinado território adscrito a determinada equipe de saúde da família devem ser cadastrados e visitados mensalmente por agentes comunitários de saúde, de forma que tal informação esteja disponível tanto para a equipe como para gestores mais centralizados do sistema de saúde. Os profissionais, na sua prática diária, são solicitados a preencher planilhas com o número do cartão nacional de saúde de cada pessoa atendida, o nome ou as iniciais do nome, data de nascimento, tipo de atendimento e código da doença principal. Tais ações assemelham-se muito ao que a “polícia médica” alemã exigia e colocava em prática, isto é, um sistema de observação de morbidade pela contabilidade pedida aos médicos e o esquadrinhamento médico da população.
O exercício do poder médico sobre determinado território e o controle do que viria a ser esse saber médico oficial e único autorizado, também condizem com os princípios da “polícia médica”. Idem a organização piramidal do corpo médico, com responsabilidades ascendentes sobre territórios adscritos, presente tanto na ESF como na medicina de Estado alemã. Atualmente, as equipes responsáveis por determinado território, respondem a equipes/gestores distritais, municipais, estaduais e federal, numa lógica de organização administrativa semelhante a da medicina de Estado, com subordinação da prática médica a um poder administrativo superior.
A normalização do ensino, da prática e do saber médicos, sob controle do Estado, em conformidade ou ditada por corporações médicas, faz-se presente até hoje nos documentos, tratados, consensos e diretrizes que pretendem nortear as ações e atividades dos profissionais, nos currículos das escolas médicas e dos demais profissionais de saúde, nos programas de residência médica e nos requisitos para obtenção de diplomas ou certificados necessários para que possam  exercer suas profissões. Dita normalização conserva princípios da “polícia médica” alemã que deixava às universidades e à corporação médica a incumbência de decidir sobre a formação médica e a outorga de diplomas. No caso específico do médico de família e comunidade, sua formação obedece ao que preconizam a Comissão Nacional de Residência Médica e a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, por sua vez vinculada à Comissão Iberoamericana de Medicina Familiar. São tais corporações que definem o perfil ideal do profissional médico que deveria compor as equipes de saúde da família (BEDRIKOW, 2013).  
Portanto, ainda que focada na melhoria de saúde da população, a ESF igualmente serve ao aperfeiçoamento e desenvolvimento de uma força estatal, implica o poder da intervenção do Estado e faz parte do esquema da organização do Estado cujo objetivo supremo é colocar a vida econômica e social a serviço da política do poder do Estado.

Referências bibliográficas
  1. Foucault M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 4a ed., 1984.  
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  8. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Programa Nacional de Melhoria de Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ): manual instrutivo / Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. - Brasília: Ministério da Saúde, 2012.
  9. Marsiglia RMG. Famílias: questões para o Programa de Saúde da Família (PSF). In: Acosta AR e Vitale MAF (organizadoras). Família : redes, laços e políticas públicas. São Paulo: Cortez editora / IE PUC-SP, 2007.
  10. Bedrikow R. A clínica e as políticas públicas de saúde para a atenção básica no Brasil. [Tese de doutorado]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2013.
Campinas, abril de 2014.