sábado, 3 de janeiro de 2015

A clínica, passo a passo

     Céu azul. Quase sem nuvens, para desespero nosso, convivendo com clima seco desde o final do ano. Terra vermelha, fina, recobrindo as folhas mais rasteiras. O arrasto dos calçados erguia a poeira até olhos e narizes. O horário de verão encerrara-se há menos de duas semanas. O sol surgia cedo. Aquele início de manhã prenunciava dia quente. Aos poucos, as pessoas iam chegando. 
A lépida idosa empunhava a bengala e dava a outra mão para a filha. Sua marcha era ágil, leve, pouco usual entre os que atingem os oitenta e oito. Dizia que os parentes tinham o hábito de morrer cedo, mas ela teimava em viver. Sua filha, sorridente, pele morena, lisa, agia como cuidadora atenta e carinhosa. Retribuía generosamente os cuidados que recebera na infância. Ajuntaram-se aos demais, reunidos para mais uma caminhada pelo bairro. 
Uma menina alegre, pura, ávida por conhecer plantas e bichos, escolhera acompanhar a avó em vez de dormir até mais tarde. Esta, por sua vez, ao fitar os olhos na neta, exibiu um vistoso sorriso. Vaidosa, bronzeada, com luzes no cabelo, aparentava estar bem consigo mesma. Como foi bom vê-la assim, cheia de vida, recuperada de injusto sofrimento que seu destino lhe impusera por ocasião da doença maligna que consumiu seu marido ao longo de penosos meses. Os olhos, antes lacrimosos, agora iluminavam os espaços por onde transitava. Não era a única. 
O circunspecto cearense sentado à minha frente conhecera infortúnio parelho. A brancura de seus bigodes bastos condizia com as cãs que lhe cobriam a cabeça como uma ligeira pasta de algodão, sem, por isso, subtrair-lhe o aspecto vigoroso e jovial que assumia tão logo entabulava conversação ou punha-se a caminhar. Certamente, na intimidade do lar, nos aposentos que continuava a frequentar, a lembrança da companheira que partira. As caminhadas, o Lian gong, o movimento vital expressivo, no convívio dos camaradas daquele arrabalde, tornaram-lhe possível levantar a cabeça e desdenhar os sintomas depressivos do alvorecer da viuvez. 
Por certo que os bons momentos vividos ali e o desejo de levar a velhice com saúde tornaram certa a presença diária de outro aposentado. As finas pernas daquele neto de imigrantes italianos, que no passado tanto pisaram as roças de café e algodão do interior do estado, estavam agora arqueadas. O andar lento e doloroso dos primeiros momentos do dia expressava a batalha diária contra a artrose, herança familiar que, há vários anos, confinara sua irmã a dois ou três quartos escuros. Ele não. Era teimoso. Coxeava por cerca de um quarto de hora. Em seguida, o corpo quente calmava a dor e lhe concedia o prazer de novamente explorar os caminhos que tanto conhecia. Entre velhos e novos conhecidos, ria e sorria. Fazia questão de, na roda, sentar-se ao meu lado pois, assim, era-lhe possível escutar as leituras, sem fazer caso a seus ouvidos octogenários que reclamavam descanso. Era ele quem puxava o “Pai Nosso”, segurando firme as mãos ao lado, e dava por encerradas as atividades logo após o “Amém”. 
Sob um chapéu de palha com largas abas, a senhora de tez clara, alegre, expansiva, vinha de longe. Falava claro e forte. Destarte, conquistara a simpatia de todos. Introduzira no grupo o costume de saudar o sol. Os participantes, em círculo, davam as mãos e aproximavam-se do centro dizendo “Bom dia sol”. Tradição e misticismo rotineiros. Dada a estiagem, saudou-se a chuva também. Sua filha estreara como poetisa há cerca de um ano, influenciada pelas leituras que usualmente ali fazíamos. Declamadas em voz baixa, suas poesias cuidavam de sofrimento interior. Mexiam com ela e conosco.
O grupo partiu na hora combinada, antes das oito, sob sol ardente. Dois, três, quatro pessoas dividiam as mesmas prosas. Ao todo, eram mais de vinte.
Assim parte o grupo pelas ruas afora…
José junta o passo com João,
que já tinha juntado o passo com Antonio…
E assim vai seguindo o passo a passo percorrendo as ruas,
hora pela terra, hora pelo asfalto…
Como a vida, o trajeto vai mudando
e o passo também…
E o corpo vai se movimentando.
E olhando bem não dá para saber qual parte se movimenta mais,
A língua ou os pés?
E Vera juntou o passo com Maria e lá se vai conversa…
E o corpo vai em movimento com todas as suas peças…
Se a língua não fala, a mente, ao contrário, não para de tagarelar
em mil pensamentos que também vão juntando o passo
e assim vão seguindo muitos pés, muitas línguas e muitas mentes.
E tem o médico que junta o passo
e vai conhecendo histórias que só podem ser ditas
no passo junta passo…
E o corpo vai vencendo a cada andar o seu limite,
afinal, os pés não estão sós,
e um passo junto com outro passo vai criando poder.
Poder para superar, lutar, sentir-se igual e fazer parte.
Ah, mas o doutor, antes atrás da mesa, agora faz parte
porque seus pés estão juntos com muitos pés…
No passo junta passo.
(Maria Leny Freire - agente comunitária de saúde - 2013)

Abacateiro, guaranazeiro, mangueira e jaqueira. O norte, a roça, a infância. A menina provou o fruto do guaraná. Doce, muito doce, mas menos gostoso que o refrigerante. Alguém lhe disse para observar o desenho do fruto no rótulo da embalagem da bebida, no supermercado. Levou consigo alguns. Mais entusiasmada mostrou-se com os abacates que pretendia comer em casa. Um espirituoso brincou que, se ao invés de uma maçã, tivesse caído uma jaca sobre Isaac Newton, talvez ele não tivesse sobrevivido ao trauma craniano para escrever a lei da gravidade. Passeio, brincadeira, atividade física, aprendizado, troca de saberes. Fora da sala de aula.
A mangueira sombreou nossa demora. Água, alongamento e recompactação do grupo que se estendera à medida que avançara. A moça risonha, com traços finos realçados pela maquiagem, amiúde ia à frente. Seu entusiasmo era evidente, mas contava que, no passado, não gostava de atividades físicas. Agora, principiava os dias caminhando, dançando ou alongando. 
Protegida do sol por uma fina sombrinha vermelha, a senhora esbelta, com o característico acento nordestino, espalhava simpatia. Durante sua viagem à Bahia, revendo familiares, relatou orgulhosa suas caminhadas ao lado do doutor. 
Muitos carregavam na memória a nostalgia da infância e juventude no agreste brasileiro. Pés nus, enxada pesada, namoros na roça, corpo afundado no colchão de palha, tênue luz das lamparinas, medo das cobras, bocados de comida amassados com farinha entre os dedos e levados com a mão até a boca. 
Uma cobra passou e se escondeu. Um dos homens a perseguiu, porém, em vão. Mulheres trocaram segredos culinários, especialmente os que levam guizos crotálicos. Homens recordaram as vezes que toparam com animais grandes e perigosos. Filhos haviam sido mordidos. Remédios caseiros e reza. A cidade ficava longe, praticamente inacessível. Felizmente, ninguém morreu.
O doutor não cansava de admirar a riqueza da diversidade ali presente. Durante a caminhada, trocava palavras com aquelas pessoas que já não eram apenas pacientes. Cada um trazia um pouco de seu passado, sabedoria, afeto, medo, esperança. Raramente conversavam acerca de doenças. 
Foi o acaso que levou para dentro do grupo o hábito da leitura após as caminhadas. Um dia, há cerca de um ano, o doutor fez uma brincadeira com o grupo. Pediu para quem fosse nascido em São Paulo ficar à esquerda e os demais à direita. Em seguida, que se posicionassem à esquerda aqueles que haviam trabalhado na roça e os outros à direita. E assim por diante, de forma a todos se conhecerem melhor. Quando pediu que aqueles que gostavam de ler passassem para o lado direito, foi surpreendido pelo senhor que não se moveu. Nunca aprendera a ler. Nesse mesmo dia, o doutor começou a ler. “Amor” e “O barbeiro”, de Luiz Vilela. Junto a eles, declamou Manoel de Barros, Vinicius de Morais, Patativa do Assaré. Leu Machado de Assis, Tolstói, La Fontaine. Naquele dia, recitou “A uma lavadeira”, de Gilka Machado, e, em seguida, pensando na menina ali presente e no passado rural da maioria, escolheu “A aranha e a mosca”, que Afonso Lopes de Almeida escreveu em 1914:

 À beira de larga estrada
Uma aranha tece a teia.
A trama, fina e doirada, 
À luz do sol reverbera…

E a aranha, encolhida e feia,
Fica à espera.

Voa ali, pousa adiante,
Rápidas curvas descreve…
Ébria de luz, fulgurante,
Segue a própria fantasia!

Céu azul, ar puro e leve…
Que lindo dia!

Lá vem a mosca. O caminho
Esplende ao Sol, que se deita
No Ocaso devagarinho…
Zum-zum… Lá vem… Presa rica!

E a aranha, de longe à espreita,
Imóvel fica.

Lá vem. Descuidada e linda,
Zumbe no ar. Silêncio em roda.
Por tudo uma calma infinda
A tarde suave estende…

E a mosca, na teia, toda
Se enreda e prende.

Zum-zum!… Aflita e medrosa,
As lindas asas agita.
Cansa-se lenta; e, furiosa,
Mais sofre, mais se arrepela.

E a aranha, que a fome incita,
Vai sobre ela.

Um lavrador que passava,
Estende a mão rude e tosca,
Liberta a mísera escrava
Que entre as árvores se some…

E a aranha, perdendo a mosca,
Morreu de fome.                          

Alguns, com pavor de aranhas, consideraram o final feliz. Para outros, a aranha deveria ser preservada por ser útil no controle da população de insetos. Não importa. A prosa foi boa. 
Deixaram-se, então, uns aos outros, lentamente. Cada um que se retirava desarranjava um pouco mais o todo, até que o todo desapareceu, restando apenas na memória de cada um. Até que se reunissem novamente.
Àquela hora, cabia ao doutor trocar a rua pelo consultório. Tirar o calção e vestir o jaleco. Substituir a obra literária pelo estetoscópio.



Rubens Bedrikow
Campinas, 1 de março de 2014.
Caminhada da sexta-feira - Campinas-SP


Nosso caminho


Pausa à sombra


Olha a cobra

Um comentário:

  1. Fico feliz e agradecida por ler e compartilhar dos seus textos. Seu olhar minucioso relatando o cotidiano de forma tão especial. Encontrando beleza e graça em coisas tão simples que nos passa quase sempre despercebidas pela nossa correria do dia a dia. A maneira carinhosa que descreve as pessoas nos faz querer conhecê-las,( ainda bem que algumas eu conheço). O passo a passo da clínica construída por um profissional tão dedicado e apaixonado pelo que faz torna as pessoas ao seu redor muito melhores. O mais bonito disso tudo que você escreve, é que são coisas vividas e não teorias inventadas. Parabéns, pela coragem em se dedicar tanto! Leny Freire.

    ResponderExcluir