sábado, 3 de janeiro de 2015

Crenoterapia

Crenoterapia é o tratamento por águas minerais (PINTO, 1946, p. 119). Água mineral é uma água de fonte natural cujo uso é suscetível de provocar um efeito terapêutico e não é necessariamente termal, isto é, quente (DELORE e MILHAUD, 1952, p. 6). Sua história confunde-se, em grande parte, com a do termalismo (uso terapêutico de água quente). No período religioso, templos destinados a divindades eram dispostos próximos às fontes hídricas e funcionavam como locais de peregrinação e de saúde. A seguir, durante a Antiguidade greco-latina, explicações empíricas impulsionaram o termalismo. Hipócrates e Galeno atribuíam efeito higiênico à água. Segundo Plínio - nobre romano, cientista e historiador que faleceu na erupção do Vesúvio em 79 d.C. - durante seiscentos anos os romanos não tiveram outra medicina além seus banhos. Mais tarde, a partir do século XVI, foi a moda que se encarregou de dar-lhe continuidade; as cortes européias passaram a frequentar as estâncias que se expandiram como nunca. A ignorância científica sobre o emprego das águas continuava. Ainda que uma fase tida como da hidrologia química tenha-se iniciado em 1670 com o trabalho de Du Clos e Bourdelin que analisaram as águas do reino a pedido da Academia de Ciências da França, a medicina termal permaneceu sob a égide do empirismo, da moda e do ceticismo até o fim do século XIX quando fundamentou-se na clínica e na ciência. Suas bases científicas provinham da geologia, física, química e biologia. As bases clínicas partiram de observações realizadas pelos médicos das cidades das águas e pelos médicos assistentes, sancionadas pelos professores de hidrologia. Uma cadeira de hidrologia e climatologia foi criada em cada faculdade de medicina e o ensino da terapêutica hidrológica adquiriu caráter oficial no programa do 5˚ ano dos estudos médicos. Ao mesmo tempo, surgiram a Sociedade de Hidrologia, os Anais de Hidrologia e climatologia, a “Presse thermale et climatique” e um congresso anual. Finalmente, o termalismo adquiriu um caráter social que se acompanhou de regulamentação e controle pelo Estado  (DELORE e MILHAUD, 1952, p. 3-5).
O Centro de Saúde do Jardim Rosália - Campinas (SP) - tem oferecido diariamente a seus usuários atividades de promoção à saúde tais como grupos de caminhada e literatura, Lian gong e movimento vital expressivo. Os encontros diários aproximaram os participantes que se ajudam, se visitam, compartilham emoções e saberes e, vez por outra, saem em passeios. O último destino foi o município de águas de São Pedro, o segundo menor do Brasil do ponto de vista de extensão territorial, com cerca de 3.000 habitantes, a pouco mais de 180 Km de São Paulo. 
Encontro marcado para às 7:30, defronte ao Centro de Saúde. O ônibus ali estacionado foi recebendo os viajantes cheios de prosa e sorrisos. Eu, médico de família, levei minha maleta com estetoscópio, receituário e carimbo, mas contava com a inutilidade de tal decisão. Minha presença no grupo explica-se pelo fato de ser eu o médico de muitos deles e participar da caminhada e da leitura semanal.      
Na década de 1920, buscou-se petróleo onde hoje situa-se a estância de Águas de São Pedro. Em vez do combustível, jorrou água sulfurosa, rica em enxofre, com cheiro de ovo podre. A mudança de rumo veio naturalmente, passando a região a receber pessoas desejosas de vencer seus males ingerindo ou banhando-se nas ricas águas medicinais oferecidas pela natureza. Daí resultou a construção do balneário e do Grande Hotel São Pedro, onde funciona uma conceituada escola de hotelaria. Ali, não há cemitério a fim de evitar a contaminação das águas subterrâneas.
Segundo Lycurgo de Castro Santos Filho (1991, p. 417), a crenoterapia começou a se desenvolver no Brasil nas últimas décadas do século XIX, porém foi no século XX que passou a ser indicada com frequência e praticada nas diferentes estâncias. 
Até o século XVIII não houve no Brasil o hábito de se servir de certas e determinadas águas, tidas como “medicinais”. E quando em fins desse século e em princípios do XIX, os médicos indicavam-nas às pessoas abastadas das capitanias de Pernambuco, Maranhão e Pará, era em Portugal, em Caldas da Rainha, que iam os pacientes cumprir a prescrição. E na segunda metade do século XIX, as estâncias hidrominerais e termais mais procuradas pelos brasileiros abonados eram as européias, principalmente Vichy, em França, e Baden-Baden na Alemanha (SANTOS FILHO, 1991, p. 409). 
Passagem marcante da história das estâncias do sul de Minas Gerais diz respeito à presença da princesa Isabel, condessa d’Eu, em Caxambu, no ano de 1868, para tratamento de esterilidade, haja vista que tendo casado em 1864, ainda não engravidara até pelo menos sua estadia em Caxambu (SANTOS FILHO, 1991, p. 418). “O Estado de Minas Gerais é o que possui maior quantidade de parques aquáticos. Segue-se o de São Paulo, com as estâncias hidrominerais de Lindóia, Águas da Prata, Serra Negra e São Pedro” (SANTOS FILHO, 1991, p. 421). 
Três diferentes tipos de água são encontradas em Águas de São Pedro. Da fonte da Juventude brota água com alto teor de enxofre, indicada para reumatismo, alergia, diabetes, asma, colite, moléstias de pele, intoxicação e inflamação. Em geral, as águas sulfurosas - ricas em enxofre - exalam um cheiro característico de ovo podre e tem um gosto não muito melhor. Uma vez ao ar livre, essas águas tornam-se turvas e leitosas devido à formação de um precipitado de enxofre (HAZARD, 1950, p. 243). A fonte Gioconda fornece água rica em sódio, mais adequada para tratar doenças hepáticas, da vesícula biliar e intestinos. Finalmente, a água da fonte Almeida Sales evita azia, excesso de acidez gástrica e diabetes. 
Cena muito comum são turistas portando garrafas de água vazias ou já cheias com as águas vertidas do rico solo. Da mesma forma que acontece com qualquer outro tipo de tratamento, as pessoas banham-se ou ingerem aquelas águas nada insípidas nem inodoras, por fé. 
A casa de banhos de Águas de São Pedro é considerado o carro-chefe do município. Turistas do mundo todo buscam nas águas sulfurosas o alívio de dores crônicas e doenças. O Spa Thermal Dr. Octávio de Moura Andrade - nome do homem que fundou a cidade em 25 de julho de 1940 - oferece banhos de imersão, de espuma, tratamento com lama, massagens diversas e outras terapias integrativas. Profissionais vestidos de branco recebem as pessoas, enfermas ou não, que acreditam no poder das águas. 
Éramos pouco mais de vinte testemunhas de um capítulo da história da medicina que não sucumbiu totalmente ao avanço da farmacoterapia pós-moderna. Ainda que  aparentemente pequeno, a crenoterapia segue ocupando um lugar interessante neste século XXI. É o que constatamos nesse passeio a Águas de São Pedro.  
 
Referências bibliográficas
  1. Delore P. Précis d’hydrologie et de climatologie: clinique et thérapeutique. Paris: G. Doin & Cie Éditeurs, 1952.
  2. Hazard R. Précis de thérapeutique et de pharmacologie. 9ème Édition. Paris: Masson et Cie Éditeurs. 1950.
  3. Pinto PA. Dicionário de têrmos médicos. 4a edição. Rio de Janeiro: Of. Graf. Fábrica de Bonsucesso, 1946.
  4. Santos Filho LC. História geral da medicina brasileira. Volume segundo. São Paulo: Editora Hucitec, 1991.

Rubens Bedrikow


Campinas, 17 e 18 de maio de 2014.

2 comentários:

  1. Olá, gostaria de saber quais profissionais podem trablhar nessa área de crenoterapia e se qualquer água pode ser utilizada ou se há alguma especificação.. Grata desde já. Parabéns pelo trabalho.

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  2. Artigo inspirador! Tanto pela informação nele contida e a história por trás envolvendo a Medicina, quanto pelo belo passeio promovido com os pacientes de Campinas. Parabéns, Dr. Rubens Bedrikow!

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