“Bom dia a todos. É com satisfação que iniciaremos nosso Brazilian meeting...Os dois médicos que estão chegando atrasados, introduzam-se, por favor!...Os eventos adversos severos devem ser reportados....A reportabilidade depende da severidade mas os reportáveis devem ser reportados sempre....A reportabilidade de determinados eventos adversos fica a sua discreção....Vocês podem realizar que a fasciíte necrotizante é uma patologia que pode ser reportada...Se o doente não estiver contactuando, é preciso falar com o acompanhante....A droga deve ser feita em bolo.”
As frases acima foram ditas por alguns dos participantes de uma reunião científica realizada em um hotel da cidade de São Paulo no primeiro semestre deste ano. O encontro, anunciado como “Brazilian Meeting”, tinha como finalidade apresentar um protocolo de pesquisa a ser desenvolvido no Brasil. Os participantes, sem exceção, eram todos brasileiros.
A reunião foi muito proveitosa mas também comicamente incômoda pois parecíamos estrangeiros falando nosso próprio idioma.
Os impressos poderiam designar o evento de Encontro Brasileiro ao invés de Brazilian Meeting uma vez que não havia nenhum estrangeiro presente e estávamos em São Paulo. Seria mais elegante a versão anglo-saxônica?
O médico que solicitou aos colegas retardatários que se introduzissem seria mais feliz se dissesse “apresentem-se”. Com certeza, pensou em inglês “introduce”.
O uso incorreto do adjetivo severo como sinônimo de grave é muito difundido nas reuniões científicas universitárias. Em inglês, “severe” significa grave mas, em português, severo significa austero, enérgico, e não grave. Portanto, os eventos adversos podem ser graves mas não severos.
“To report” deve ser traduzido como relatar. Os eventos adversos graves deveriam ser relatados e não reportados.
Aqueles que leram em voz alta também estranharam a frase “fica a sua discreção” derivada de “at your discretion”. Não seria melhor “fica a seu critério” ?
Não é raro encontrarmos colegas que empregam a palavra realizar como sinônimo de imaginar, entender. Quando dizem “agora eu realizei o que aconteceu”, na verdade pretendiam dizer “agora eu entendi o que aconteceu”.
A fasciíte necrotizante seria melhor chamada de doença pois patologia é o ramo da ciência que estuda as doenças. O termo necrotizante também está errado pois em português temos necrose, necrosar e necrosante. Em inglês é “necrotizing”.
“Paciente não contactuante” é frase rotineiramente usada pelos médicos nas enfermarias mas seria melhor dizer que o doente não está se comunicando pois “contactuante” não existe.
“In bolus”, expressão latina usada para designar injeção rápida e de uma só vez não soa bem quando traduzida para “em bolo”.
Acredito que os exemplos acima não devam ser interpretados apenas como vício de linguagem entre nossos médicos mas sim reflexo na linguagem médica da influência norteamericana na forma como a medicina é praticada em alguns centros brasileiros.
Dois aspectos relacionados à medicina brasileira atual merecem reflexão:
- O perfil da nossa medicina parece mais próximo da norteamericana em detrimento da européia. Quais as consequências disso ? Encarecimento ? Sofisticação técnica excessiva ? Prejuízo da relação médico-paciente ?
- Pesquisas e trabalhos realizados no Brasil seriam mais valorizados caso a influência norteamericana fosse mais discreta ? Devemos ou não nos engajar numa campanha em prol do resgate de uma medicina mais brasileira ?
Seria bom que nos nossos Brazilian meetings os médicos deixassem de reportar apenas os trials ou reviews americanos e procurassem conhecer mais da obra médica brasileira.
Rubens Bedrikow
São Paulo, 2000.
Muito bom esse texto! Tradutor antenado percebe bem essa coisas.
ResponderExcluirGostei do seu texto, pq achei muito pertinente. Em Portugal, eu diria nos países de língua portuguesa, a "invasão anglicana" tem provocado sérios danos. Dou exemplos, doente passou a ser paciente, pq em inglês é patient, resistente passou a ser resiliente, história clínica passou a ser histórico ou historial, aptidões passou a skills, directivas passou a guidelines, etc. Bem sei que as línguas são matérias permeáveis, mas isto é ridiculo, e um povo que não defende a sua língua, e um povo sem valores, orgulho e desnorteado!
ResponderExcluirAlgumas aportuguesações são bem estranhas também. Outro dia vi 'erbague' para air bag. Affffffff.
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